Instantâneos (75): meninos que carregam o mundo nos ombros
Parecem olhar para nós, lá do alto, acenando. São enormes e aparentam equilibrar-se a custo enquanto nos observam com um ar meio ameaçador, de quem já viu tudo e com nada se espanta. É difícil não reparar nas quatro gigantescas figuras nuas, esculpidas em granito e que o povo, sempre irónico, apelidou de “meninos da graça”, pois apresentam-se-nos sobre a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Graça, em Évora.
O simbolismo daqueles estranhos seres em pedra é incerto.
A tradição local diz que representam os primeiros mártires da Inquisição naquela cidade. Os globos que os acompanham seriam os mundos descobertos pelos portugueses.
Pode até ser, porque a construção do conjunto conventual em que se insere esta igreja data de uma época de grandes descobertas.
Por outro lado, em 1536, foi em Évora, onde a corte residia na altura, que originalmente se criou a Inquisição e se verificaram as primeiras denuncias.
Uma homenagem aos “hereges” era, assim, um ato de rebelião do autor do projeto, que a isto assistia enquanto liderava as obras.
Será?
Ou foi novamente o povo, acossado com as perseguições, que ali quis ver uma homenagem às vítimas do Santo Ofício…
A explicação clássica, no entanto, remete para outro tipo de condenados.
Aquelas criaturas seriam os titãs que, na mitologia grega, desafiaram o poder e a ordem de Zeus. Como castigo, o deus dos deuses condenou um deles - Atlas - a eternamente carregar o mundo – ou os céus - sobre os seus ombros.
As figuras atlantes da Igreja de Nossa Senhora da Graça de Évora, no entanto, não suportam os colossais globos que as acompanham, nem têm o ar sofredor, habitual em Atlas, ao qual o oceano Atlântico, o mítico continente Atlântida ou a conhecida cordilheira norte africana devem o nome.
Atlas é também a primeira vértebra cervical, sobre a qual assenta a cabeça: toda a glória do pensamento, mas também todo o carrego das preocupações e dos dilemas que enfrentamos. Daí que se tenha batizado de complexo de Atlas um tipo de stress que se traduz em querer assumir todas as funções e tudo controlar. Os “meninos da Graça” têm, efetivamente, este ar agitado, sem paz ou descanso.
Quem sabe? Se nem o autor de tais esculturas é certo, variando as opiniões entre Nicolau de Chanterene e Francisco de Holanda, bem como o responsável pela construção, por uns atribuída a Miguel de Arruda e, por outros, a Diogo de Torralva…
O edifício, esse, ali está há cerca de cinco séculos, mantendo-se teimosamente apesar de já ter enfrentado a ruína em várias ocasiões. É o primeiro exemplar de pleno renascimento português e panteão do Conde de Vimioso, D. Francisco de Portugal, que o recebeu de D. João III, desagradado com a pouca sumptuosidade ostentada. O convento tem há muito utilização militar.
Fontes
O Convento de Nossa Senhora da Graça de Évora - Conjunto conventual - Utilização diacrónica; de Maria do Céu Simões Tereno; conferência extraída do livro "Conversas à volta dos conventos"; Casa do Sul editora, Évora, 2002. Disponível em: CONVENTO_DE_NOSSA_SENHORA_DA_GRACA_DE_EVORA-libre.pdf (uevora.pt)
Inquisição de Évora - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)
DGPC | Pesquisa Geral (patrimoniocultural.gov.pt)
Atlas (mitologia) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
O mito da Atlântida - Mitologia em Português
Igreja da Graça em Évora (visitevora.net)
Igreja da Graça (Évora) - Infopédia (infopedia.pt)
Arquivo Municipal do Município de Évora
welcome - Arquivo Municipal CME (cm-evora.pt)
António Passaporte
PT/AFCME/APS/1031/36
Os dois "meninos" da direita (Foto: Ana Travasso)
A Matéria do Tempo: Os Meninos da Graça (amateriadotempo.blogspot.com)