Instantâneos (77): e do céu caíram as mais estranhas coisas
Uma chuva de flocos brancos como a neve e leves como o algodão surpreendeu a população de Lisboa e arredores, corria o dia 6 de novembro de 1811. O povo, pouco dado a explicações científicas, começou logo a ver em tão desusado fenómeno um sinal de grandes males que se aproximavam e, não fosse o diabo tecê-las, apressou-se a rezar pedindo misericórdia.
Nesse estranho e até então sereno dia de outono, pela hora do almoço, as pessoas viram cair lenta e delicadamente dos céus esses frágeis filamentos que em alguns locais cobriram árvores, telhados, ruas e campos até onde a vista alcançava, tomando todos de espanto numa vasta área, pois o prodígio foi relatado também Tejo acima, em Valada e, mais para Sul, em Palmela e Azeitão.
A meio do rio, embarcações ficaram pejadas deste curioso tecido semelhante a gaze, mas ainda mais fino e leve, uma espécie de lanugem que ninguém tinha visto por estes lados.
Foi precisamente da observação de quem se encontrava a bordo que surgiram as primeiras explicações sobre o que se via. Num convés, com pouca escapatória, foi fácil de perceber que o que caia do céu eram teias com as respetivas aranhas que, em terra, rápidas e pequenas como eram, depressa desapareciam sem deixar rasto ou confundiam-se com outros insetos do mesmo tipo que existem um pouco por todo o lado.
Devemos esta memória a Sebastião Francisco Mendo Trigoso. Este membro da Academia Real de Ciências de Lisboa, – em complexa explicação com o fim de afastar toda a superstição que rapidamente envolveu esta inusitada chuva – alvitrou logo que o mais plausível era tratar-se de jovens aranhas, recentemente saídas dos seus ovos, que se encontrariam como que suspensos na atmosfera devido às condições dos dias anteriores ao facto.
Não terá andado longe, até porque o fenómeno já foi narrado em outras paragens e, apesar de pouco usual por cá, faz parte do processo de migração de algumas espécies de aracnídeos.
Curioso é que este senhor tão entendido nos mistérios da natureza tenha ficado para a história mais como político. Foi censor régio e fez parte da comissão que elaborou o projeto constitucional de 6 de outubro de 1820, sendo de sua autoria uma proposta conciliadora para a convocação das cortes, algo de grande valor em tempos conturbados como aqueles e que, lamentavelmente, não foi por diante, porque, entretanto, D. Miguel resolveu tomar o poder e impor a sua lei.
………………
Fontes
Memórias de Mathemática Physyca da Academia R. das Ciências de Lisboa; Tomo III, parte II – Lisboa 1814. Disponível em Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa - Google Livros
Hemeroteca Digital de Lisboa
Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)
Ilustração Portugueza
2ª série; nº916 – 8 set 1923
maltez.info/respublica/topicos/aaletraa/Academia das Ciencias de Lisboa.htm
Autor:Sebastião Francisco Mendo Trigoso - Wikisource
Trigoso, Sebastião Francisco Mendo (1773-1821) | Politipedia
Arquivo Municipal de Lisboa
Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)
PT/AMLSB/ATF/000612
Sintomas de alergia? Não culpe o algodão das árvores (proteste.pt)