Instantâneos (82): diretamente da vaca, para salvar vidas
De um lado, filas de mulheres mal-encaradas, precocemente envelhecidas, suplicantes, com os filhos pequenos ao colo. Uma algazarra constante, misto de choradeira e palração. Do outro, pachorrentas, pacíficas e enormes vacas. Assim era o dia-a-dia dos lactários de Lisboa, copiados de estruturas idênticas que surgiram um pouco por toda a Europa, embora com a particularidade de ter os estábulos ali mesmo, à mão de…ordenhar.
O objetivo era fornecer leite – alimento de qualidade – às muitas crianças indigentes que então enchiam a Capital, frutos tantas vezes indesejados dos muitos que para ali tinham rumado, vindos dos campos, em busca de melhor sorte.
Há cem anos, Lisboa abarrotava de menores sem eira nem beira, crianças abandonadas, maltrapilhas e famintas. Crianças cujas mães não dispunham de meios para lhes garantir o sustento, desdobrando-se em trabalhos diversos para assegurarem a sua própria sobrevivência e que impediam que amamentassem os filhos.
Anualmente morriam cerca de duas mil antes de completarem dois anos de idade, grande parte vítimas de infeções intestinais. Entre os sobreviventes, eram numerosos os enfezados e raquíticos: o espelho das condições em que viviam.
Foi para atenuar este flagelo que, em 1903, surge o primeiro lactário do País – a palavra nem sequer existir em português - em Lisboa, criado pela Associação Protetora da Primeira Infância, fundada por Rodrigo Aboim Ascensão e apoiada pela rainha Dona Amélia. Foi no largo do Museu de Artilharia (atual Museu Militar), mas, nos anos seguintes, a experiência seria replicada até em outros pontos do País.
Em 1925 davam-se os primeiros passos para a criação dos lactários municipais, num total de seis – Graça (rua da Infância); Mercês (rua Luz Soriano); Jardim da Estrela; Mouraria; Alcântara e São Sebastião. Tratou-se da uma iniciativa do vereador responsável pelo pelouro da Instrução e Assistência, Alexandre Ferreira.
Para além do indispensável leite, esterilizado e entregue duas vezes por dia em garrafas-biberão, para os bebés com menos de 18 meses, os lactários de Lisboa proporcionavam banhos higiénicos às crianças – e até imersões terapêuticas em água salgada, para fortalecer as mais débeis – pesagens, consultas médicas e enxovais para colmatar as lacunas de toda a ordem das famílias de origem. Havia também “criadeiras” – as primeiras incubadoras em solo nacional - para os recém-nascidos frágeis - mas, pelo menos nos primeiros anos, não foram utilizadas.
Em dias especiais, realizavam-se bodos aos pobres e atribuíam-se prémios às crianças mais robustas.
No ano seguinte, com a saída de Alexandre Ferreira, começam os problemas, com o executivo lisboeta a entender que os lactários municipais tinham custos excessivos, quer em pessoal, quer, sobretudo, com a alimentação das vacas. Face a tal constatação, o orçamento dos lactários municipais foi sucessivamente reduzido, até que tal responsabilidade foi passada à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
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Fontes
Os lactários Municipais (1925-1927), de Ana Brites; Arquivo Municipal de Lisboa. Disponível em: Cadernos7Grafica.qxd (cm-lisboa.pt)
Museu do Lactário
Museu do Lactário (fasl.org.pt)
Museu do Lactário em Lisboa | getLISBON
Hemeroteca Digital de Lisboa
Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)
Illustração Portugueza
Nº95 – 16 dez 1907
Nº98 – 6 jan 1908
2ª série; nº933 – 5 jan 1924
Alexandre Ferreira: sonhador de belezas, distribuidor de bondade: conferência proferida a convite da comissão executiva do monumento a Alexandre Ferreira pelo prof. Dr. Caetano Beirão da Veiga; Lisboa; 15 jun 1950. Disponível em: 1950_06_15_Caetano_Beirao_da_Veiga_Alexandre_Ferreira_um_Sonhador_de_Belezas_e_Distribuidor_de_Bondade.pdf (invalidos.org)