Instantâneos (83): o trágico fim do homem que escrevia comédias
Naquele mês de janeiro de 1890, Lisboa ficou chocada e consternada com a morte trágica e violenta de Júlio Cesar Machado, um dos mais notórios escritores da cidade, conhecido pelo fino humor dos seus folhetins, que transformavam numa comédia os tiques sociais dos portugueses daqueles tempos. Dois meses antes, ele e a mulher tinham sofrido a maior desdita que qualquer pai pode sentir: o suicídio do seu único filho, desesperado com um amor tão imberbe, quanto fatal.
Esse triste dia de novembro em que, aos 16 anos, o jovem Júlio Costa Machado se despediu da vida com um tiro de revólver, marcou também o destino dos pais.
O “alegre” novelista, antes “espírito luminoso e jovial” deixou de brilhar.
O desgosto de perder o filho em quem tinha depositado todas as suas expetativas e esperanças mudou-lhe a vida, mesmo nas mais simples rotinas diárias. Não dormia, alheou-se do mundo, evitando até os amigos e conhecidos. Nunca mais escreveu.
A aparente loucura que sobre ele se abateu foi entendida e respeitada por todos, porque Júlio Cesar Machado era uma pessoa benquista e admirada como cidadão e autor de dezenas de livros, centenas de crónicas e outros textos, traduções e peças de teatro.
Mas, os mais próximos perceberam que não era só a dor que o minava. Tanto ele, como a mulher começaram a denotar uma espécie de paranoia que os fazia desconfiar das pessoas com quem se relacionavam. Sentiam-se perseguidos, acossados, encurralados.
Decidiram então que não mais poderiam aguentar tal provação e, no dia 12 de janeiro, encomendaram à velha criada de sua casa que fosse à rua do Ouro comprar o jornal. Quando esta regressou, três quartos de hora depois, deparou-se com um cenário de horror naquele terceiro andar do número 2 da travessa do Moreira*.
O patrão jazia morto com os pulsos violentamente cortados, sobre uma poça de sangue, no chão. A patroa agonizava com as mesmas marcas. Em cima de uma cadeira, estava o retrato do filho recentemente perdido.
Ambos estavam impecavelmente vestidos, como se partissem de viagem. Em cima da secretária estava uma corda, com que inicialmente haviam pensado enforcar-se, e uma carta, onde se explicava o motivo de tão desesperado ato.
Soube-se depois que a indiscritível e incomensurável mágoa que o casal sentia foi ainda ampliada pela receção de insistentes e insidiosas cartas anónimas, que davam conta da vida devassa e leviana, até ilegal, que o filho levava, intensificada pelo amor obsessivo que nutria por uma cocote.
Perder o filho tinha sido insuportável, sabê-lo ignóbil foi-lhes fatal.
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Maria das Dores Machado sobreviveu. Ou melhor, fisicamente não morreu. A rainha D. Maria Pia, de quem havia sido açafata até casar e que havia enviuvado pouco antes, conhecendo a situação desesperada em que se encontrava, anunciou imediatamente que acolhia e lhe prestaria amparo em sua casa.
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*A travessa do Moreira, que une a rua do Salitre à avenida da Liberdade adotou o nome de Júlio César Machado a partir de 1904, homenageando o folhetinista ali falecido. Foi apenas uma das várias homenagens de que foi alvo. Dias após a morte, correu uma angariação de fundos para lhe erigir um mausoléu e a sua estátua foi erguida no cemitério do Alto de São João (obra de Simões de Almeida) - imagem acima -, onde repousa.
Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal em linha
Diário Illustrado
18º ano; nº 5970 – 17 nov 1889
19º ano; nº 6028 – 13 jan 1890
19º ano; nº 6031 – 16 jan 1890
19º ano; nº 6032 – 17 jan 1890
Hemeroteca Digital de Lisboa
Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)
Illustração Portugueza
1º ano; nº 24 – 18 abr 1904
O Occidente – Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro
13º ano; volume XIII; nº 399 – 21 jan 1890
Júlio César Machado – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
A Rua Júlio César Machado | Toponímia de Lisboa (wordpress.com)
Imagens
Diário Illustrado
Illustração Portugueza
Arquivo Municipal de Lisboa
Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)
Armando Maia Serôdio
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SER/002006