Instantâneos (85): os protagonistas esquecidos do quotidiano
O enorme fardo de palha lentamente desmanchado domina toda a imagem e monopoliza a nossa atenção. Mas, esta bela aguarela de Roque Gameiro mostra muito mais daquela Lisboa perdida que o pintor quis recuperar e perpetuar nas suas obras*. Mostra aquilo que normalmente é ignorado.
No entanto, somos dominados pela azáfama que se persente árdua dos homens, paulatinamente desbastando o gigantesco aglomerado*, vergando-se depois sob o peso de cada carregamento que transportam, equilibrados a custo na prancha que os separa do carro de bois.
Se conseguirmos afastar o olhar deste movimento que Roque Gameiro nos quis projetar, vemos ao longe a Torre de Belém, testemunha silenciosa da partida e chegada de tantas embarcações e navegadores.
Vemos, na praia, um homem que empurra um pequeno barco, anunciado que vai lançar-se com ele às águas, quiçá para alcançar algum dos navios que vislumbramos à esquerda.
Quase somos também salpicados pela brincadeira dos rapazes que, a pouca distância, se banham no Tejo, indiferentes a quem trabalha ou descansando também de alguma tarefa anterior.
O areal não convida ao veraneio. Está sujo e cheio de perigos - cacos, uma fateixa, paus espetados. No entanto, é ali que, em primeiro plano mas ofuscadas por toda a restante atividade, vemos duas mulheres negras. Uma repousa já, sentada num inesperado trono. A outra lava uma espécie de vaso nas águas do rio.
São calhandreiras. Em tempos sem esgotos, calcorreavam a cidade recolhendo dejetos. Por uma pequena quantia, levavam para longe, para as águas do Tejo, os incómodos despojos das casas. Correspondiam ao degrau mais baixo da escala social. Faziam o trabalho a que mais ninguém se submetia e, no entanto, aqui estão como protagonistas belas desta obra de Roque Gameiro.
“Descarga no Tejo”, o título atribuído a este quadro tem, assim, um duplo significado. Os homens descarregam a palha que vai servir a população. As mulheres fazem o mesmo aos restos indesejados da vida alheia. Ali, nas traseiras da cidade que eram então a frente ribeirinha, ambos são personagens, tão úteis quanto desvalorizadas, do quotidiano lisboeta.
……………………………….
Alfredo Roque Gameiro (1864-1935) teve uma carreira longa e extremamente produtiva. Embora as suas aguarelas tenham retratado os mais diversos temas, nomeadamente com a ilustração de obras literárias, dedicou parte do seu trabalho à preservação em imagem da memória de trajes, tipos e profissões desaparecidos.
Esta obra em particular, pode ser apreciada no Museu da Aguarela Roque Gameiro, em Minde, terra natal do pintor.
.......................
*A embarcação retratada por Roque Gameiro aparenta, pelo sistema de velas visível e pela forma do casco, ser uma muleta, barco de pesca típico do Barreiro e do Seixal, na margem sul do Tejo, e caída em desuso no século XIX. Curiosamente, mais usada para transporte de mercadorias, era a fragata.
........................
Fontes
MNAC: Alfredo Roque Gameiro (museuartecontemporanea.gov.pt)
Museu de Aguarela Roque Gameiro | www.visitportugal.com
Alfredo Roque Gameiro – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Alfredo Roque Gameiro | ROQUEGAMEIRO.ORG (tribop.pt)
Maria Lucília Abreu, in Roteiro do Museu de Aguarela Roque Gameiro (2009)
Almada virtual: Fragatas e varinos do Tejo (almada-virtual-museum.blogspot.com)
Muleta - CM Barreiro (cm-barreiro.pt)
Roque Gameiro - autorretrato - Instituto dos Museus e da Conservação : Info/Pic, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=18451578