Instantâneos (87): a sorte grande no sapatinho
Ansiosos, expectantes, esperançosos. Centenas de homens e algumas – poucas – mulheres aguardam o momento que pode mudar as suas vidas para sempre. Há um século, os tempos eram difíceis e, para muitos, ganhar a sorte grande era, de facto, a única hipótese para ultrapassar a miséria. Não admira, pois, que nos dias de extração da lotaria, se aglomerassem no largo fronteiro ao edifício da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, acotovelando-se para saber se pertenciam ao grupo dos afortunados.
Para esses, nada seria como antes. Para a esmagadora maioria, a vida lá teria de continuar com as mesmas dificuldades e uma réstia de fé numa futura taluda. Para a próxima é que é!
Essa confiança, alimentada na compra de cada bilhete, dava alento para suportar as agruras do quotidiano. Lamentavelmente, não pagava as contas.
Pelo simbolismo próprio da quadra - que intensifica os sentimentos, tornando os bons ainda melhores e os maus verdadeiramente tristes - mas também pelos prémios habitualmente mais chorudos, a Lotaria do Natal é talvez o mais aguardado dos sorteios, havendo até quem só jogue por esta altura. Este ano, anda à roda no dia 27 de dezembro.
A lotaria em Portugal é genericamente bem mais antiga, pois foi criada em 1783, por decreto da rainha D. Maria I. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estava assim autorizada a explorar este jogo, revertendo os lucros para o Hospital Real, a Casa dos Expostos e a Academia Real de Ciências. A primeira apoteótica extração demorou uns épicos 34 dias, durante os quais meninos acolhidos naquela instituição retiraram manualmente todos os 22.500 bilhetes, alguns dos quais premiados, das enormes rodas de madeira onde estavam convenientemente misturados.
Desde aí muito mudou. Este popular jogo chegou a estar suspenso, passou por várias mãos e formatos até ser finalmente entregue em exclusivo à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1893) e adotar o título formal de Lotaria Nacional, em 1955.
A atual sala de extrações data de 1903 e o largo, que assistiu a tantas expetativas frustradas - foi de São Roque, passando a homenagear o jornalista Trindade Coelho, logo após a implantação da República - é hoje conhecido de muitos como “do cauteleiro”, devido à estátua que ali consagra aquela personagem indissociável da lotaria. Na voz do povo dificilmente deixará de ser o largo da Misericórdia.
Mantêm-se os fins solidários iniciais e a esperança dos que adquirem as cautelas. É raro, mas já aconteceu, algum vencedor estar ali mesmo, ouvindo ao vivo os números do pequeno papel que tem na mão.
Será uma alegria indiscritível para quem ganha e também para os pregoeiros que, todas as semanas, se vestem a rigor e afinam as vozes para cantar a sorte de outrem.
Talvez seja desta!
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A Lotaria Clássica é sorteada todas as segundas-feiras, às 21h45, com transmissão televisiva na RTP2. Os sorteios da Lotaria Popular realizam-se na sala de extrações da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, às quintas-feiras, pelas 12:30.
A mítica sala, que se situa num dos claustros seiscentistas da Casa-Professa de São Roque, tem o traço de Adães Bermudes e é visitável mediante marcação.
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Nota: as imagens apresentadas têm datas entre 1920 e 1926.
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Fontes
Jogos Santa Casa - Jogar - Lotaria Clássica
A lançar dados desde o século XIII (dn.pt)
Texto de Marina Marques, Diário de Notícias – 27 jul 2012
Lotaria Nacional - 235 anos de tradição - Revista BICA
Texto de Paulo Rosa - Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal
Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001664
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001665
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)
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