Instantâneos (88): a cara do mal
Feroz, implacável, pronta a ceifar vidas, independentemente da idade ou condição. O mal com corpo de mulher e a crueldade no rosto. Foi assim que, em 1856, Vítor Bastos retratou a epidemia que então já trazia 23 anos de mortes por toda a Europa, tendo, em Lisboa, deixado um pavoroso rasto após cinco tenebrosas vagas.
O escultor imaginou esta morte a esvoaçar sobre os infelizes, arrastando uma jovem e lutando contra o tempo, aqui retratado como um velho que também sobrevoa o caos que se passa na terra.
Aí, à direita, vemos um conjunto de figuras femininas - uma delas com o filho inerte nos braços - a quem o conforto proporcionado pela fé – em pé – permite uma digna resignação ao infortúnio iminente.
Um caos de gente e animais em fuga, desenrola-se à esquerda. Ao centro, uma cidade, sob a qual jazem alguns corpos.
Para lá da triste e bela perfeição das formas, o curioso neste baixo-relevo é ser um caso raro de arte inspirada por aquela doença que tanta mortandade deixou entre nós.
Enquanto, por toda a Europa, se sucedem os exemplos na pintura, desenho, escultura e até cartoons com um certo humor negro, neste pequeno retângulo português, não são conhecidos – ou pelo menos não são notáveis – outras peças de arte com a cólera mórbus como protagonista.
Foi considerada a obra mais significativa do romantismo português, esta iniciativa de Vítor Bastos apresentada na exposição da Academia de Belas Artes desse mesmo ano.
A ideia foi inicialmente delineada numa gravura, cujo traço foi transposto para gesso patinado (na imagem) e, em 1861, esculpido em mármore. O rei D. Luís gostou tanto desta última versão que a adquiriu para o Palácio da Ajuda, passando, em 1949, a pertencer ao acervo do Palácio da Pena, em Sintra.
A cólera mórbus terá vindo da Índia a bordo de navios, penetrando fácil e velozmente nas cidades portuárias, grassando entre a população que habitava em espaços exíguos, pouco ventilados, sem esgotos ou água potável. Lisboa foi uma presa fácil, com mais de sete mil mortos só na primeira vaga.
A epidemia que viveu entre nós até 1856 esteve, aliás, na origem dos dois grandes cemitérios que hoje ainda conhecemos – Alto de São João e dos Prazeres, iniciados em 1833.
Já Vítor Bastos, considerado um inovador, nomeadamente do ensino da escultura no nosso País, ficou conhecido como por outras obras igualmente marcantes, mas felizmente menos lúgubres, antes evocativas de períodos áureos da nossa história, como o monumento a Camões, que tem na base algumas das mais importantes figuras portuguesas da ciência relacionadas com os Descobrimentos. Regressa aos nomes maiores da portugalidade no arco da rua Augusta, onde são suas as estátuas de Vasco da Gama, Viriato, Marquês de Pombal e D. Nuno Álvares Pereira, bem como as alegorias dos rios Tejo e Douro.
É sua a face desta morte temida no século XIX.
Como será retratada para a história a moléstia que, em plena década de 20 do século XXI, nos provoca hoje igual medo?
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A versão em gesso patinado, que vemos na imagem, foi adquirida pelo legado Valmor em 1906 – 1907 e integrada no Museu Nacional de Arte Contemporânea em 1914.
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Fontes
MNAC: Vítor Bastos (museuartecontemporanea.gov.pt)
Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado
Texto de Catarina Duarte
MNAC: Cólera Morbus (museuartecontemporanea.gov.pt)
Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado
Texto de Maria Aires Silveira
Portugal sob o signo das pandemias — História e Artes | Ciclo de conferências 15 de março de 2021 "A Cholera morbus e a escultura de Victor Bastos" Miguel Figueira de Faria (UAL). Disponível aqui: "A Cholera morbus e a escultura de Victor Bastos." — Miguel Figueira de Faria (UAL) - YouTube
http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=1011908
https://www.parlamento.pt/VisitaParlamento/Paginas/BiogVitorBastos.aspx
Hemeroteca Digital de Lisboa
Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)
Revista Occidente
17º ano; XVII volume; nº 559 - 1 jul 1894