Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (94): uma visita de sultão

suktao marrocos 6.jpg

O ano de 1910 foi atípico para Portugal. Nesse outono em que abandonámos um sistema político que nos acompanhava desde o alvorar da nacionalidade, recebemos uma curta e invulgar visita em relação à qual só o alvoroço em que os portugueses andavam, preocupados com a incerteza das suas vidas, fez atenuar a curiosidade popular. Ironicamente, um país que acabara de depor o seu monarca, recebeu com toda a formalidade um sultão destronado: Abdel-Hazis*, igualmente desterrado, mas bem mais exótico do que D. Manuel II, já então rumando ao exílio em Inglaterra.

suktao marrocos 3.jpg

O ex-sultão, derrubado pelo irmão em 1908, precisamente no ano em que o nosso último rei foi aclamado, mudou-se para a Europa e gastava parte do seu tempo em viagens de entretenimento, diplomacia e enriquecimento cultural pelos diversos países, deslocando-se com um reduzido séquito.

 

suktao marrocos 1.jpg

Talvez buscasse um pouco de tranquilidade e silêncio, razoavelmente afastado das diversas mulheres e grande número de filhos a cargo, todos a estudar na Alemanha. Era, portanto, alguém muito versado em casamentos, talvez por isso tivesse sido interessante saber a sua opinião sobre a denominada Lei do Divórcio, que o novíssimo Governo aprovara precisamente no dia da sua chegada. Não consta, no entanto, que alguém o tivesse questionado sobre a matéria.

suktao marrocos 2.jpg

Vindo de Sud Expresso, desembarcou em Lisboa a 3 de novembro, menos de um mês após a implantação da República. Passeou a sua elevada estatura, envergando túnica e albornoz brancos, contrastantes com delicadas meias de seda e sapato ocidental de cor clara. Calcorreou as nossas calçadas, de cabeça coberta, qual príncipe das Mil e Uma Noites, contrariando os amigos que o haviam aconselhado a passar ao largo do nosso território nesses tumultuosos tempos.

suktao marrocos 5.jpg

A figura, deveras inusitada por estas bandas, suscitou algum espanto, mas pouco mais foi que nota de extravagância na complicação que era, por aqueles dias, a vida dos portugueses, na sua maioria sem perceber muito bem, ainda, o que representava isso da República.

Sua alteza visitou os museus de Artilharia (atual Museu Militar), Etnográfico (Museu Nacional de Arqueologia) e dos Coches, observou com atenção a arquitetura do Mosteiro dos Jerónimos e ainda se deslocou a Sintra, manifestando-se impressionado com o que viu.

suktao marrocos 8.jpg

Antes do turismo propriamente dito, fez questão de ser recebido pelo ministro dos Estrangeiros, à época Bernardino Machado, bem como pelo chefe do Governo Provisório, Teófilo Braga que, a braços com todo um regime por organizar, ainda encontrou tempo para conversar com o ilustre estrangeiro e garantir que o País se encontrava em ordem e sossego, ao que o sultão respondeu ser isso perfeitamente natural num povo bom, generoso e pacífico como o nosso…

Belas, mas questionáveis palavras de parte a parte. Nem Portugal se encontrava pacificado – com greves, manifestações e violências nas ruas – nem para Marrocos seria fácil ter esta imagem tão idílica de uma nação que várias vezes entrou à força nos seus domínios.

suktao marrocos 5.jpg

Como, teoricamente, tudo estava na paz do Senhor – não sabemos se Deus ou Alá – os governantes lusos ainda retribuíram a visita, avistando-se com Abdel-Hazis, no Hotel Central, onde partilharam uma bela refeição de bifes e degustaram vinho do Porto.

O sultão, que durante o seu reinado tentou, em vão, modernizar as instituições do seu País, desbravar aquelas terras com linhas de caminho-de-ferro, bicicletas e outras estrangeirices, malvistas pelos tradicionais marroquinos, seguiu viagem, deixando Lisboa tão confusa como a encontrou.

 ..............................

*Abdel-Hazis Ben el Hassan

 

................................

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

A Capital

02 nov. 1910

04 nov. 1910

 

Illustração Portugueza

14 nov. 1910

 

Brasil-Portugal

16 nov. 1910, texto de Câmara Lima

 

Eva-Maria von Kemnitz, A crise de Agadir de 1911 - Texto inédito lido na Casa do Alentejo, Lisboa, 11.05.2017

Disponível aqui: Entangled peripheries. New contributions to the history of Portugal and Morocco - A crise de Agadir de 1911 - Publicações do Cidehus (openedition.org)

 

 

Os 111 anos da Lei do Divórcio – Observador, 03.11.2021, texto de Dantas Rodrigues.

 

https://www.britannica.com/biography/Abd-al-Aziz-sultan-of-Morocco

Marrocos - Relações Diplomáticas - História Diplomática - Relações Bilaterais - Portal Diplomático (mne.gov.pt)

https://www.wikiwand.com/pt/Abdalazize_de_Marrocos

 

Imagens

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001953  1

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002290  7

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002876  8

 

Alberto Carlos Lima

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000556  2

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000557  3

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000558  4

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000559  5

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000560  6

 

 

 

 

11 comentários

Comentar post