Instantâneos (98): à procura da Glória numa calçada
No início do século XX, a calçada da Glória, em Lisboa, era o mais radical desafio que colocava à prova os novíssimos automóveis que então chegavam ao mercado. Os representantes das marcas internacionais desdobravam-se em “aventuras” para mostrar as capacidades dos seus veículos e promover a aquisição por parte das camadas mais endinheiradas, mas quem se divertia era o povo, que acorria aos magotes, para ver as hesitantes viaturas treparem pela ladeira, evitando o movimento pendular dos elétricos, que já por lá andavam desde 1885.
Banalizada que estava a subida da rua Barata Salgueiro (na imagem), paragem original destes destemidos do automobilismo, a calçada da Glória passou a ser o grande objetivo.
A primeira marca a arriscar tal proeza terá sido americana Locomobile, representada entre nós pela F. Street & Cª.
Estas carruagens sem cavalos estavam ainda na transição para o que seriam os modernos automóveis com motores de combustão interna e eram a vapor, com uma estrutura pequena e fácil de conduzir.
A interessante experiência, como lhe chamou uma revista, foi um sucesso.
O sr. Fish, ao volante, acompanhado por três pessoas, subiu a ingreme encosta em 110 segundos num Locomobile Dos-a-dos (na imagem, em passeio na Boca do Inferno).
Correu tão bem a subida e a assustadora descida, que dias depois repetiu a façanha e passou a utilizar tal prova na sua publicidade, anunciando os Locomobile como os únicos com capacidade para superar a Calçada da Glória.
É claro que não ficariam sozinhos por muito tempo, porque logo outras marcas tentaram ultrapassar tal teste, algo nada fácil naqueles tempos, diga-se, com as viaturas a escorregar mais do que a acelerar declive acima.
Não foi bem o caso de Tavares de Melo, com um Darracq por si adaptado com uma caixa de velocidades especialmente criada para ajudar a transpor a subida, ainda por cima com oito pessoas no interior, o que logrou conseguir em igual número de minutos.
Ainda assim a ascensão foi morosa e aos ziguezagues, evitando os elevadores e as irregularidades do pavimento. A descida foi marcada por duas paragens, uma delas “violenta”, não sabemos se acidental, se para provar “a eficácia dos potentes freios do veículo”, depois batizado “Zico pedal”.
Seguiu-se a Sociedade Portuguesa de Automóveis. Com o seu De Dion Bouton modelo Populaire subiu calçada “sem o mínimo esforço”. Não contente, em outubro de 1905, após firmar o recorde Paris – Lisboa, com uma portentosa média de 34 quilómetros por hora, ainda subiu a antes temida encosta. Ao volante estava o intrépido Francisco Martinho.
No ano seguinte, foi a vez da equipa Estevão de Oliveira Fernandes e José da Silva Vacondeus, que, após prova do Km da Valada, avançou facilmente pela calçada aos comandos de um Züst.
No Porto também havia uma encosta igualmente desafiante. A rampa da Corticeira era até considerada inultrapassável, até que, em 1910, o representante da Ford – Albino Moura – com um Modelo T, percorreu os 300 metros com inclinação de 29 graus em apenas 32 segundos (na última imagem).
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Fontes
José Carlos Barros Rodrigues, A Implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910), Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2012. pp128-131
Hemeroteca Digital de Lisboa
Tiro & Sport
15 mai. 1904
15 jun. 1904
31 out. 1905
Tiro Civil
01 mai. 1903
Illustração Portugueza
16 mai. 1910
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Rua Barata Salgueiro - Paulo Guedes, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/PAG/000458
Calçada da Glória - Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000604
Calçada da Gloria com elevador - 1900+–+Calçada+da+Glória.jpg (1024×768) (slideplayer.com.br)
Hemeroteca Digital de Lisboa
Illustração Portugueza
Rampa da Corticeira
16 mai. 1910
Anúncio - Gazeta do Caminho-de-Ferro, 1903
Tiro Civi
Passeio pela Boca do Inferno
1 mai. 1903