Instantâneos (99): a ilha dos galegos
Uma corda, um pau e um chinguiço* era tudo o que os galegos precisavam para levar meia Lisboa aos ombros, de um lado para o outro. A comunidade era conhecida ao longe pelos imprescindíveis apetrechos, o boné e a chapa de identificação que o município, a dada altura, os obrigou a envergar. E eram tão numerosos e requisitados, que chegaram a ter uma ilha própria.
Andavam por todo o lado, mas era ali, em pleno Chiado, no centro do então denominado largo da Duas Igrejas - por se situar entre os templos do Loreto e de Nossa Senhora da Encarnação - que um numeroso grupo de galegos escolheu assentar arraiais. Aquela “bolacha” de calçada passou a ser o local por excelência para quem precisava dos seus préstimos para um qualquer frete.
Assumiam mudanças de toda a espécie – eram exímios no transporte em padiola de peças de mobília, independentemente da dimensão e peso – o carrego de compras, fardos e caixas de mercadoria para os estabelecimentos comerciais, recados e…cartas de amor.
Quantos bilhetes apaixonados não terão as suas mãos calejadas entregue às escondidas, contrariando olhares curiosos da mãe ciosa ou da vizinha bisbilhoteira? Quem diz de amor, diz de lascívia, ajudando a ludibriar os cônjuges desprevenidos…
Os galegos, participavam também no esforço de combate a incêndios, acorrendo e colaborando com os bombeiros, puxando as bombas ou os carros de escadas, sempre que para tal eram chamados, através de uma espécie de campainha que existia numa esquina próxima.
E tinham a serventia de substituir o envergonhado proprietário na avaliação de um qualquer objeto que, em hora de aperto, se pretendia pôr “no prego” sem dar nas vistas. Consta até que eram bons a regatear o melhor preço, mais que não fosse, porque disso dependia a generosidade do seu pagamento.
Eram ainda e de forma muito expressiva os aguadeiros de serviço. Devidamente identificados e nas bicas previamente atribuídas dos chafarizes da cidade, enchiam os seus barris, que depois carregavam Lisboa adentro, apregoando o precioso líquido quando ainda teimava em só correr nas casas mais abastadas.
Aos poucos foram desaparecendo, substituídos por empresas especializadas ou promovidos a outras atividades mais lucrativas, como o comércio, onde provaram ter igual tino e obstinação.
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*O chinguiço era uma pequena almofada em forma de meia-lua que colocavam no pescoço para atenuar a dor e o desconforto de arrastar grandes pesos.
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Fontes
Mário Costa, O Chiado Pitoresco e elegante, Lisboa, Município de Lisboa, 1965.
Vinham da Galiza e faziam fretes aos lisboetas (timeout.pt)
Texto de Eurico de Barros
Hemeroteca Digital de Lisboa
Illustração Portugueza, 21 set. 1908.
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000243
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000093
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000807
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000809
José Artur Leitão Bárcia
PT/AMLSB/POR/053293