Instantâneos (52): a desolação feita obra de arte
Quanto desânimo e sacrifício. Homens curvados sob o peso da derrota e dos despojos das suas vidas. Manchas difusas no meio da neve suja de lama e desesperança. Enregelados, exaustos, famintos, arrastando-se, mas caminhando sempre, rumo à redenção. É difícil, para quem sabe o que foi a participação portuguesa na I Grande Guerra, não ser invadido pela emoção vendo esta pintura monumental de Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944) – a Rendição - que domina uma das salas do Museu Militar, em Lisboa. Os soldados são enormes e, no entanto, parecem frágeis, indefesos. Quase temos vontade de os ajudar, de os abraçar e chorar com eles. Não há ali qualquer glória, antes uma imensa solidão.
Arrebatados das suas aldeias, onde viviam uma existência pacata e sã, foram arremessados contra a trágica realidade de matar ou morrer. Têm frio e fome, sentem saudades de casa, rezam para que o pesadelo termine e, apesar de tudo, lutam, se não por Portugal, pelo menos pela suas almas. Nunca mais serão os mesmos.
Muitos não regressarão, como o soldado José Alves, artilheiro da 5ª bateria de Le Touret, retratado momentos antes de ser abatido. Tinha ficado para trás, desesperadamente tentando destruir a sua arma com uma tosca picareta, para que não fosse usada pelo inimigo (na imagem 3).
Adriano de Sousa Lopes partilhou as trincheiras da Flandres com o Corpo Expedicionário Português. No nosso País, foi o único a fazê-lo e por sua iniciativa. É que o Estado lusitano, ao contrário dos outros participantes no conflito, que enviaram vários artistas registar o esforço de guerra, não tinha intenção de mandatar quem quer que fosse para fazer esse trabalho.
Talvez receasse o resultado, porque conhecia seguramente o gigantesco esforço exigido aos homens na frente de batalha, pela falta de meios e a desadequação dos existentes, materiais e humanos.
O artista consegue impor a sua presença, anota o que vê e, nos anos seguintes, transporá para a tela e o papel, um conjunto de trabalhos que resumem a participação do nosso País nessa guerra ingrata.
Afirmando o seu talento, até então desconhecido, consegue a fama desejada expondo a quem quisesse ver a verdadeira dimensão da desgraça, só testemunhada por quem lá esteve ou pelos que vivenciaram a tragédia de não ter os seus jovens de regresso a casa.
Esse luto infinito está, aliás, patente no funeral do soldado desconhecido (na imagem ao lado), onde as figuras de negro são todas as mães da nação que não voltaram a ver os seus filhos e para sempre ficaram reféns desse vazio.
Depois, há a ausência de cor que, nas numerosas águas-fortes* (imagens 4 a 8), que produziu sobre o envolvimento de Portugal na I Grande Guerra, Sousa Lopes, compensou com um traço impaciente, de quem quer documentar tudo o que viu ou pressentiu, antes que a poeira dos dias o faça esquecer. Nada deveria temer. Porque nada poderia fazer esquecer tal desolação.
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Já aqui antes falei da participação de Portugal na I Grande Guerra:
A tragicomédia do soldado João Ninguém na I Grande Guerra
Instantâneos: O “Cristo das trincheiras” e a abóbada
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*água-forte é uma gravura obtida a partir de uma chapa onde se grava uma imagem/desenho com a utilização de ácido azótico ou nítrico.
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Fontes
Um pintor nas trincheiras, por Carlos Silveira, in 25 olhares sobre a I República – do republicanismo ao 28 de maio; Edição Público, Comunicação Social, SA; Lisboa, outubro 2010.
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/artistas/ver/48/artists
https://dicionario.priberam.org/%C3%A1gua-forte [consultado em 25-01-2020].
Imagens
http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/artistas/ver/48/artists
https://zassu.blogs.sapo.pt/grande-guerra-1914-1918-28604
http://arepublicano.blogspot.com/2012/11/adriano-sousa-lopes-um-pintor-na-grande.html
https://institutodehistoriadaarte.wordpress.com/2017/11/20/mencao-honrosa-premio-de-defesa-nacional-2016-carlos-silveira/
http://www.arqnet.pt/portal/imagemsemanal/abril0201.html