Instantâneos (115): matar a sede de ferro, amor e inteligência
Haverá muitos locais que façam bem ao corpo, ao coração e ao intelecto? Pois, na cidade do Porto existia um espaço com estes três atributos, ainda que nem sempre em simultâneo. A Fonte das Águas Férreas, erguida sobre uma nascente descoberta em 1784, foi, durante muito tempo, o poiso seguro para quem procurava esses diferentes tipos de conforto.
Provadas as qualidades medicinais do manancial ali encontrado, a área foi cedida ao município portuense, que construiu um chafariz com duas bicas, corria o ano de 1804.
Tinha a particularidade, única na cidade, de fornecer águas ferruginosas, alegadamente benéficas para quem padecia de anemia e outras fraquezas, ajudando a curar os males físicos e, em simultâneo, prover água potável de qualidade, algo que, por aquela altura, ainda não corria nas torneiras, porque as não havia em casa.
Não se estranha, por isso, que a afluência fosse muita. Tanta, que se mandou construir uma alameda com bancos, onde os debilitados se sentavam, enquanto bebiam copinhos de águas férreas, até estarem saciados ou terem cumprido a prescrição médica.
Ora, por aquelas épocas, as senhoras jovens eram amiúde acometidas desses abatimentos, bem como dos tormentos da alma próprios do romantismo – aquelas com algum estatuto, claro está, que as pobres não tinham tempo nem disposição para tais achaques. Não é preciso pensar muito para se perceber que, onde havia donzelas de família, rapidamente começaram a aparecer mancebos garbosos que as queriam ver.
Foi assim, que a Fonte das Águas Férreas passou a ser uma espécie de ponto de encontro informal embora “desencontrado” para esta juventude atormentada, que ali buscava consolo para o coração. Desencontrado, porque não eram tempos para liberdades e expressões públicas de afeto. As meninas vinham matar a sede sobretudo de manhã e os rapazes, que as observavam de longe, acorriam depois para poder beijar o copo usado pela sua amada.
Para que este platónico desiderato se desse, pagaram ao guarda, um pândego conhecido em toda a cidade como “Cartola”, naturalmente porque não saía de casa sem um desses chapéus altos na cabeça.
Resta explicar como é que tal espaço fazia bem ao intelecto. É que, ali mesmo ao lado, viveu o historiador Oliveira Martins. Destacado no Porto por questões profissionais, frequentemente reunia com outros cérebros portugueses de alto gabarito: Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, ilustres membros da brilhante “Geração de 70”.
O grupo de cinco, que se autointitulava “a matilha”, entretinha-se ali em animada cavaqueira e despiques culturais que, como se calcula, constituíam forte estímulo mental para os seus intervenientes.
A toponímia mantém a memória das águas férreas, a casa ainda existe, mas a fonte deu lugar a um parque de estacionamento.
No entanto, não se perdeu: foi desmantelada e reerguida – embora não como originalmente – no Parque da Cidade. Na pedra ainda se guarda registo da dupla utilidade – águas medicinais e águas “domésticas” – pois a ferrugem impregnada não deixa dúvidas sobre qual era a bica que tinha a preferência das raparigas anémicas e casadoiras.
Fontes
Germano Silva, Porto desconhecido & insólito, Porto Editora, 2015.
Germano Silva, Porto – As histórias que faltavam, Porto Editora, 2021.
Arquivo Municipal do Porto
Asilo de Mendicidade, Exemplar do semanário Revista Popular, n.º 24, PT-CMP-AM/COL/GRA/D.GRA:1.159
PT-CMP-AM/COL/GRA/D.GRA:1.159
Hemeroteca Digital de Lisboa
Revista Popular: semanario de litteratura e industria, 1848-1855.
Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, Direção-Geral do Património Cultural, texto de Isabel Sereno, 1996, em
"A fonte de águas férreas é apenas mais um dos motivos de interesse histórico e patrimonial do Parque da Cidade” (sapo.pt) programa de Joel Cleto, Porto Canal.
Imagens
Fonte das Águas Férreas, antes e depois, Germano Silva, Porto desconhecido & insólito, Porto Editora, 2015.
Arquivo Municipal do Porto
Palácio dos Sousa Mello, F-NP/CMP/7/3848; F-P/CMP/10/371(3)