Instantâneos (66): milagre, milagre já não temos
Se perguntarmos às dezenas de comerciantes com banca montada no Sítio da Nazaré se têm lembranças do milagre, a resposta é quase sempre a mesma. “Um porta-chaves, um íman de frigorífico, uma t’shirt, alguma coisa para pendurar ao pescoço ou na parede? Milagre… milagre já não temos, não se usa”. Nada ou quase nada alude à lenda que deu origem à ocupação do local onde nos encontramos: praticamente tudo o que ali se vende evoca o surf, que suplantou a história com mais de 800 anos. D. Fuas Roupinho deve dar voltas na sepultura.
Conta a lenda que aquele companheiro de armas do nosso primeiro rei andava à caça em dia de nevoeiro cerrado. Apesar da bruma, avistou um veado que perseguiu desenfreadamente.
O animal, que depois se entendeu ser a encarnação do diabo, terá conduzido o cavaleiro à beira do precipício sobre o mar, local onde Nossa Senhora da Nazaré intercedeu para o salvar, pois estacou o cavalo a tempo de não cair atrás do veado. Tudo devido a uma imagem muito antiga da Santa que se encontrava numa gruta ali perto.
Acreditando ter assistido a um milagre, D. Fuas terá dado ordem para ali construir um templo – a ermida da Memória – que ainda existe e à qual sucedeu, cerca de dois séculos depois, o santuário, sucessivamente alargado e embelezado com o apoio e o aval reais, que hoje persiste como local de romaria devota e muita curiosidade ateia.
O alegado milagre terá ocorrido a 14 de setembro de 1182 e o relato do mesmo, boca a boca, escrito e, sobretudo, em registos iconográficos foi repetido milhares de vezes, estando presente em inúmeros painéis de azulejo, pinturas, desenhos e, até recentemente, nas diversificadas lembranças que os visitantes tinha à sua disposição para comprar no Sítio da Nazaré.
Na última década, tudo mudou.
As extraordinárias ondas desta costa são, efetivamente, ainda mais antigas que D. Fuas Roupinho.
Já ali se surfava pelo menos desde os anos 60, mas foi em 2010 que se deu a viragem: chega à Nazaré Garret Mc Namara que, no ano seguinte, ali bate o recorde mundial da maior onda surfada.
Tinha 24 metros, era resultado do célebre canhão da Nazaré – um fenómeno geológico que produz ondas de grandes dimensões – e o feito correu mundo com uma rapidez nunca imaginada por D. Fuas Roupinho.
Passou veloz na televisão e sobretudo na Internet, onde se tornou viral.
Depois disso, muitos outros surfistas destacados já levaram o nome desta vila aos sete cantos do planeta, perpetuando o fenómeno que hoje parece reunir as preferências dos turistas.
E, no entanto, o visitante encontra referências oficiais ao milagre praticamente em cada esquina do Sítio, painéis explicativos e informação sobre a candidatura a Património Imaterial da Humanidade, até porque o culto a Nossa Senhora da Nazaré está disseminado por todo o mundo… só que não chegou com a força e a celeridade de uma onde gigante.
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A última imagem é de uma escultura oferecida pela artista Adália Alberto à Narazé que, embora tenha suscitado alguma polémica e divergência de opiniões, espelha bem a mudança de memórias no Sítio da Nazaré.
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Fontes
https://www.culturacentro.gov.pt/museu-dr-joaquim-manso/agenda/milagre-de-nossa-senhora-da-nazare/
http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=285885
https://www.cmjornal.pt/sociedade/detalhe/estatua-de-veado-surfista-gera-polemica
Imagem 1
Registo de Santo
"Milagre de Nossa Senhora da Nazaré", não datado (séc. XVII?)
Gravura a buril, colorida
Pergaminho, 13,7 x 9,4 cm
Cedência do Museu Nacional de Arqueologia, 1973
Museu Dr. Joaquim Manso inv. 267 Grav.