Instantâneos (76): o mestre da palavra
O mestre está absorto nos seus pensamentos. Aliás, todos aparentam alheamento, não reparando que o fotógrafo os observa ou assim se apresentando por indicação deste. Todos, à exceção do menino de olhar vivo que nos fita com um vago sorriso nos lábios e da senhora que, no edifício do outro lado da rua, parece observar de soslaio a cena que aqui se desenrola. Não sei quem são as crianças ou a mulher, mas o homem não poderia estar mais bem enquadrado, pois que foi o autor do método que ensinou várias gerações de crianças a ler.
O indivíduo de longa barba e aparência descuidada é João de Deus. É com este mesmo ar pensativo e displicente que surge em muitas das imagens que o recordam. A sua mente parece vaguear e provavelmente é isso mesmo que acontece, porque sabemos que escreveu numerosas abstrações em forma de poesia.
O interesse pelo ensino só se deu tarde. João de Deus de Nogueira Ramos (1830-1896) foi um boémio que demorou dez anos a concluir o seu curso em Coimbra e se desdobrou em biscates literários e jornalísticos para se sustentar, enquanto transpunha para o papel o que lhe ia na alma, granjeando grande admiração como poeta romântico.
Ficou célebre também como conversador, desenhador e músico. Na verdade, fez de tudo um pouco para ter o espírito ocupado e pagar as contas – chegou a costurar para um grande armazém de roupa de Lisboa – embora rejeitasse as amarras de um pagamento fixo. Os bens materiais não lhe interessavam.
Foi até “empurrado” para a eleição como deputado, não fazendo grande caso desse cargo,
Parece ter sido apenas quando de se dedicou à alfabetização, um grande problema do Portugal de então, que encontrou o rumo de vida.
A célebre Cartilha Maternal, revolucionária para a época (1876), propunha um método novo para aprender. Inovador foi também o impulso de ir País fora ensinar a ler e preparar professores para lecionar sob este novo processo.
O outrora aluno pouco aplicado fundaria a sua própria escola e persistiria no estudo da pedagogia, escrevendo e publicando diversas obras
Seria amplamente homenageado em vida e já depois de morto . repousando junto de outros grandes portugueses, no Panteão Nacional - mas a maior consagração, no entanto, talvez tenha sido a longevidade e sucesso da sua Cartilha, em cujas páginas muitos milhares de discípulos desvendaram os segredos da arte de ler.
Ali, era a palavra – e não a letra – o que estava no centro da aprendizagem. Não seria de esperar outra coisa de um poeta, não é?
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Fontes
A Cartilha Maternal ou Arte de Ler de João de Deus (1876): invenções tipográficas e alfabetização popular em Portugal; de Justino Magalhães; Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
Associação de Jardins Escolas João de Deus (joaodeus.com)
João de Deus de Nogueira Ramos – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Site Autárquico da CM Silves CONVERSA-DEBATE SOBRE “A CARTILHA MATERNAL (cm-silves.pt)
João de Deus - Infopédia (infopedia.pt)
João de Deus, de S.Bartolomeu de Messines ao Panteão Nacional (rtp.pt)
A Viagem dos ArgonautasJOÃO DE DEUS E O ROMANTISMO SOCIAL PORTUGUÊS – por Sílvio Castro
Arquivo Municipal do Porto
Emílio Biel e Companhia
Código parcial F.NP:1-EB:9:34