Lendas de mouras, cavaleiros, deusas e outros prodígios
Como terra antiga que é, Alcácer do Sal tem várias lendas que passaram de boca em boca e hoje estão praticamente esquecidas. São ocorrências extraordinárias que, fantasiosas ou não, nos falam dos povos que aqui habitaram em tempos imemoriais.
Uma lenda é uma velha narrativa sobre acontecimentos que não se sabe serem verídicos, mas cujo relato passou de geração em geração, sendo muitas vezes difícil perceber quando começou ou até encontrar registos escritos. As lendas d’ A Costureirinha ou d’ A Luz da Caniceira são comuns a praticamente toda a região do Baixo Alentejo, mas Alcácer, como terra antiga e rica de história que é, tem várias lendas próprias, algumas mais conhecidas do que outras.
A mais divulgada destas estórias fantasiosas é a de Almira e do seu amado Gonçalo. Toda a gente já ouviu falar desta moura que aqui permaneceu após a reconquista cristã, da inexplicável nostalgia com que cantava e tocava o alaúde, bem como da forma como conquistou o coração do bravo cavaleiro, que lhe terá dedicado os célebres versos que terminam: “Vós sois aquela que amo, por vosso merecimento, com tanto contentamento, que por vós a mim desamo”.
Há, no entanto, outras lendas tão belas e tão alcacerenses quanto esta.
Uma delas também se passa por altura da reconquista cristã, que certamente marcou muito a população local.
Conta-se que um grupo de gananciosos cruzados - dos que tinham vindo ajudar a expulsar os mouros - depois roubaram riquezas da alcáçova do antigo governador muçulmano, no castelo.
Acontece que, talvez por má consciência, terão sido perseguidos e assustados por assombrações que os condenaram pelo mau ato que haviam praticado e, com medo de um castigo vindo de outro mundo, terão devolvido os objetos subtraídos e desaparecido para sempre.
Há mais lendas que são apresentadas como eventuais milagres.
Mais especificamente, aquela que fala de uma boa mulher que costumava prestar a sua devoção a Santa Maria dos Mártires (como se denominava o atual Santuário do Senhor dos Mártires - na imagem - até ao século XVII ou XVIII).
O caso chegou aos nossos dias, nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, e foi localizado em Alcácer do Sal pela historiadora Maria Teresa Lopes Pereira.
Num sábado, a tal senhora crente atrasou-se e encontrou as portas da igreja trancadas. Rezou com tanto fervor, que aquelas se abriram, fechando-se novamente após a sua saída. Ao chegar à vila muralhada, encontrou os portões também encerrados. Novamente rogou à Virgem e esta não só lhe terá aparecido e fraqueado o caminho, como a terá conduzido pela mão até casa.
Outro relato - sobre o qual já aqui escrevi – conta o triste prodígio da jovem Querubina, filha do Duque de Bragança, que veio para o Convento de Nossa Senhora de Aracoeli de Alcácer do Sal em 1580. Em vez de se curar da moléstia que a afetava, ali morreu. Diz quem viu que, 17 anos depois, quando se tratou da trasladação dos seus restos mortais, estes se encontravam intactos, imaculados, como se viva ainda estivesse, o que provocou enorme assombro em todos.
Outra lenda exclusiva de Alcácer - e ainda mais antiga que as anteriores - tem precisamente a ver com o nome que os romanos escolheram para esta terra quando até aqui estenderam o seu domínio. Efetivamente, ao contrário do que muitos pensam, Salacia não deriva de sal, mas sim de uma deusa assim chamada, uma ninfa prometida em casamento ao rei dos mares, Neptuno.
Conta a lenda que Alcácer terá sido invadida por bárbaros vindos do norte de África, que pilharam a terra e maltrataram as suas gentes. O povo terá então rezado, pedindo a intervenção da sua protetora, a deusa Salácia, para castigar os piratas.
Nesse momento, uma grande tempestade ter-se-á erguido do oceano e destruído os barcos dos salteadores, fazendo-os afundar.
Como sinal de reconhecimento, os alcacerenses terão construído um grande templo em honra de Salácia que, no entanto, nunca foi encontrado pelos arqueólogos… porque ainda não tiveram essa sorte; porque se encontra soterrado sob alguma igreja cristã ou, simplesmente, porque tal templo é apenas uma lenda e não chegou a existir. Quem sabe?
À margem
Existem em Portugal dezenas de lendas de “mouras encantadas” que, contrariamente ao que o nome indica, podem ter uma origem até anterior à ocupação muçulmana do nosso território, assumindo depois as características de donzelas desse povo invasor. Tal como Almira, estas “mouras” são invariavelmente, belas e cativantes, frequentemente filhas de um rei ou alcaide e acabando por cair de amores por um cavaleiro cristão, também preso do seu amor. As versões variam consoante a tradição oral das várias regiões.
Em Figueira de Castelo Rodrigo, a moura transforma-se em cobra e vive junto a um tanque; em Salir, no Algarve, a jovem é filha do alcaide mouro e faz-se passar por uma estátua, desaparecendo em seguida; em Chaves, a moura é enfeitiçada pelo noivo a quem havia traíodo com um cavaleiro cristão; em Sintra, a moura chama-se Zaida e dá nome a uma lendária cova; em Ourém, chamava-se Fátima, ganhando o nome cristão de Oreana…
Depois também há lendas de mouros “encantados”. Conta-se que o árabe Al-Mansour, sobre cujo cadáver D. Afonso Henriques terá passado a cavalo, continua, em noites de luar, a atrair raparigas das cercanias ao seu retiro secreto no castelo de Alcobaça, “com palavras sedutoras e dolentes cantares noturnos”, dos quais só S. Bernardo as consegue salvar.
Mas isso é outra história …
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Fontes
Almira, a moura encantada, de Cristiana Vargas, Lendas de Alcácer do Sal nº1; Câmara Municipal de Alcácer do Sal – setembro 2013
Salacia, rainha dos mares, de Cristiana Vargas, Lendas de Alcácer do Sal nº2; Câmara Municipal de Alcácer do Sal – setembro 2013
A conquista de Alcácer – Terra de piratas, de Cristiana Vargas, Lendas de Alcácer do Sal nº3; Câmara Municipal de Alcácer do Sal – setembro 2013
O Culto de Nossa Senhora dos Mártires em Alcácer do Sal, a Senhora da Cinta e as Cantigas de Santa Maria de Maria Teresa Lopes Pereira; Medievalista online – ano 5, nº6 - 2009; Instituto de Estudos Medievais - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Disponível em MEDIEVALISTA (unl.pt)
Lendas de Portugal, de Emília de Sousa Costa, 2ª edição aumentada; Livraria Figueirinhas – Porto
Lendas Portuguesas; Investigação, recolha e textos de Fernanda Frazão; Multilar – Edição, Promoção e Distribuição Lda. – Lisboa 1988
Lenda e mitologia romana nas moedas cunhadas em Salacia (Alcácer do Sal) – Arqueologia romana em Portugal, citando “lenda popular narrada pelo dr. Rocha Marftins em 1935”. Disponível em www.portugalromano.com
Moura Encantada I - Município de Figueira (cm-fcr.pt)
A_Moura_Encantada_de_Salir_1.pdf
Lenda da Moura da Ponte de Chaves - Infopédia (infopedia.pt)
Lenda da Cova Encantada ou da casa da Moura Zaida - Infopédia (infopedia.pt)
LENDA DA PRINCESA FÁTIMA | MOURA ENCANTADA (wordpress.com)
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Nota: à exceção das gravuras representativas de Alcácer do Sal, as imagens presentes são meramente ilustrativas.
Imagens
História de Portugal, popular e ilustrada (1899-1905) de Pinheiro Chagas; ilustrações de Alfredo Roque Gameiro; Empreza da História de Portugal – Lisboa. Disponível em: História de Portugal, popular e ilustrada (1899-1905) | ROQUEGAMEIRO.ORG (tribop.pt)
Imagem Biblioteca Nacional de Portugal em linha http://purl.pt/5528
Historical, military and pictoresque observations on Portiugal, de George Landmann; Vol II; T. Cadell and W. Davies, Strand . Londes, 1818. Disponível em Biblioteca Nacional de Portugal em linha Historical, military, and picturesque observations on Portugal, illustrated by seventy-five coloured plates, including authentic plans of the sieges and battles fougth in the Peninsula during the late war, London, 1818 - Biblioteca Nacional Digital (purl.pt)
Imagem Biblioteca Nacional de Portugal em linha http://purl.pt/5528