Mil caras e estratagemas do “Físico-mor”
Nunca feriu ou agrediu alguém. O modo de operar deste vigarista dandy era outro. Vestido com aprumo, fazia-se passar por alguém com nome sonante ou profissão influente, vidas imaginadas ao ínfimo pormenor e contadas com um arrojo nunca visto. Assim, ganhava a confiança das vítimas que se esforçavam por lhe colocar avultadas somas nas mãos.
Imaginação prodigiosa, descaramento sem limites e um enorme talento para a representação. Estavam reunidas as características para formar um artista amplamente admirado. Em vez disso, criou-se um burlão cuja identidade nem a polícia conseguiu alguma vez determinar com certeza, tantas foram as personagens inventadas por aquele que, na Galeria dos Criminosos Célebres (ver à Margem), ficou conhecido como o “Físico-mor”.
Nenhum crime de sangue, desacato ou desobediência mancham o seu currículo impecável de vigarista dandy, que impressionava pelo fino trato, elegância e educação com que, habilmente, manipulava as suas vítimas de forma a extorquir-lhes avultadas somas sem elas darem por isso, antes, oferecendo-se para as entregar ao cativante homem.
Profissões teve muitas, todas pomposas, mas só na sua lábia, porque, efetivamente, que se saiba, apenas houve uma ocupação legal, a de corretor num hotel de Viana do Castelo, cidade onde terá nascido, presumivelmente em 1858. Aí, observando atentamente quem o rodeava, terá aprendido a forma de estar, falar e agir das classes dominantes, com as quais obviamente se identificava.
Munido de tão preciosa formação, aos 25 anos, rumou a Lisboa – em 1ª classe, claro. Fato irrepreensível, monóculo insinuante, cabelo bem aparado, olhar expressivo e gestos desenvoltos, a combinar com a vivíssima inteligência.
Começou por passear-se demoradamente a cavalo pelos locais onde a alta sociedade flanava o seu ócio, granjeando rapidamente um conjunto de conhecimentos circunstanciais que lhe seriam úteis no futuro.
A fama de distinto sports man assentava-lhe bem e era fundamental para os pequenos ardis que começou por montar, enganando aqui e ali, obtendo produtos luxuosos e favores caros que se tornaram o seu modo de vida.
O truque era sempre criar na vítima a vontade incontrolável de lhe colocar à disposição o bem que pretendia e que depois, claro está, nunca pagava ou restituía. O método, então pouco documentado em Portugal – o Físico-mor foi, assim, um visionário - tinha já “escola” em França, onde estes indivíduos eram conhecidos como escroques.
Passou a ser presença assídua à chegada dos paquetes vindos do Brasil. Em cada viagem, o passageiro com ar mais abastado era a sua presa de eleição, facilmente conseguindo ganhar a sua confiança e até amizade.
Falava com desenvoltura de locais onde nunca havia estado, de pessoas que jamais vira, de atributos profissionais apenas conhecidos de ouvido, mas que ele conseguia petulantemente “embrulhar” como se neles fosse especialista, apresentando-se com tal arrojo que a todos enganava, obtendo valores mais ou menos significativos, dependendo da história que conseguia urdir.
Quando receava ser reconhecido num determinado circuito, mudava de poiso de “caça”, entrando com enorme desplante em instituições públicas e casas abastadas, participando com distinção em soirées cultas e eventos ilustrados.
Apesar de analfabeto, a todos impressionava com a sua erudição.
Como tinha um medo terrível de ser apanhado, quando suspeitou que corria risco em Lisboa, rumou à província, onde usou os mesmos estratagemas.
Médico, diretor clínico de hospital; lavrador; advogado; comissário de polícia; engenheiro; estudante de medicina; chefe de bombeiros…..Doutor Felgueiras de Amorim; Alfredo de Sousa, Alfredo Frederico Fernandes; Jorge Frederico de Brito Viriato…. Ninguém sabe bem quem foi o Físico-mor, embora se pense que o seu nome verdadeiro terá sido Luís Augusto Pereira, já que foi o que usou mais tempo e no final da vida, quando, depois de ter sido apanhado em Lisboa, começou a andar de cadeia em cadeia, sem conseguir fugir nem sequer à tuberculose, que já o consumia e impedia que se apresentasse com o alinho que lhe era habitual, principal característica para ser bem-sucedido nas suas manhas.
O seu último furto foi um guarda-chuva. Morreu na cadeia de Évora, a 9 de abril de 1886. Teria apenas 28 anos.
À margem
O Physico-mor – como então se escrevia - é o primeiro da Galeria de Criminosos Célebres, uma obra constituída por sete volumes escritos entre 1896 e 1908 por vários autores em que são passadas em revista as vidas e “proezas” dos maiores criminosos portugueses dos finais do século XIX, sob o ponto de vista jornalístico e científico.
Depois de encerrado este trabalho, muitas outras figuras do crime teriam certamente logrado impressionar os editores o suficiente para poder integrar o elenco, até porque, comparados com alguns dos criminosos modernos, os antigos são uns verdadeiros anjinhos.
Por esse mundo fora, certos burlões ficaram para a história tanto pelo volume do que conseguiram “desviar”, como pelo inusitado dos esquemas inventados. Como Víctor Lustig, que ficou conhecido por ter vendido a Torre Eiffel, por duas vezes; ou Charles Ponzi ao qual é atribuída uma das maiores fraudes do século XX, no valor de 50 milhões de euros, num esquema ainda hoje usado em versões online.
Comum é a invenção de identidades falsas. Nessa “arte” há os que acabam mal, como o Físico-mor, e os que singram, conseguindo transportar para uma vida relativamente honesta os conhecimentos obtidos do outro lado da lei. Esse é o caso de Frank Abanagle Jr., sobre o qual até já se fez um filme*. Criou pelo menos oito personagens diferentes para si próprio e desviou cerca de três milhões de euros em 26 países. Depois de apanhado, cumpriu pena e fundou a Abagnale & Associates, uma empresa de consultoria especializada em fraudes, que foi um sucesso e lhe permitiu manter a vida de milionário que sempre desejou.
Mas isso é outra história….
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*“Catch me if you can”, com Leonardo Di Caprio
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Fontes
Do crime e da loucura; de A.Victor Machado; Henrique Torres-Editor: Lisboa-1933. Disponível em: https://archive.org/stream/DoCrimeEDaLoucuraMachado/Do%20crime%20e%20da%20loucura%20Machado#page/n1/mode/2up
Infâmia e Fama – O mistério dos primeiros retratos judiciários em Portugal (1869-1895), de Leonor Sá; Edições 70, maio 1918.
https://melhorde10.com/10-mentirosos-burloes-famosos-que-ficaram-para-a-historia/
https://www.2oceansvibe.com/2019/11/15/real-catch-me-if-you-can-con-artist-says-you-should-never-post-these-three-things-on-social-media-video/
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Fotografias
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/
PT/AMLSB/PEX/001293
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LSM/000452
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002738
PT/ PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001861
Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000742
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001557
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À exceção dos retratos do Físico-mor, as imagens presentes são meramente ilustrativas da época e situação.