Pela imprensa (20): mal sabe o que tão bem faz
A julgar pelo semblante sereno mas determinado do pescador e pelo ar agonizante do peixe, poderia pensar-se que o homem se prepara para, com as suas próprias mãos, extrair pela boca do “fiel amigo”, o fígado com que se irá produzir esse tónico tão extraordinário quando difícil de tragar com que se fortificaram ranchadas de crianças ao longo dos tempos. O anúncio é de 1898, época em que a tuberculose ceifava muitas jovens vidas e este produto era, para muitos, a única esperança.
O óleo de fígado de bacalhau da empresa Arriaga & Lane tinha sido lançado no mercado em 1884 e, apesar de, obviamente, não estar sozinho no mercado, afirmava-se único, por ser “colhido” em peixe fresco capturado por navios portugueses, cuja tripulação deveria ser composta por homens tão robustos e zelosos como o da imagem.
Um óleo com tão genuína proveniência valia por si e era purificado “sem que nenhuma operação química” alterasse a sua composição. Por isso, contrariando a má imagem olfativa e gustativa, num outro anúncio da marca, assegurava-se que, ao contrário de outros, neste, o “cheiro e sabor em nada repugnam” e é “bem tolerado pelos estômagos mais delicados”.
E, para que não existissem dúvidas e o cliente não fosse iludido com imitações, descrevia-se a embalagem ao pormenor. A atestar todos esses predicados, aliás, cada garrafa era acompanhada de um prospeto onde se forneciam as explicações sobre este nutritivo líquido.
O óleo de fígados de bacalhau da Arriaga & Lane recebeu vários prémios de qualidade, em exposições nacionais e internacionais e, assegurava-se na publicidade, era o preferido de “entre todas as marcas estrangeiras”, reunindo a escolha de médicos e professores de renome da Real Escola Médica de Lisboa e do médico da “real câmara”, sendo usado de forma abrangente em instituições como “o Hospital de S. José, a Real Casa Pia, a Associação de Asylos, Asylo D. Luís, a enfermaria de creanças do Hospital D. Estephânia”, entre outras.
Apropriadamente, em Lisboa, a Arriaga & Lane tinha depósito na rua dos Bacalhoeiros, 135 1º e, no Porto, na rua Passos Manuel, 72-76 (Manuel Francisco da Costa & Cª). Também se vendia no Brasil.
Face à concorrência de produtos externos, que já se apresentavam em cápsulas, prevenindo o contacto com o sabor, também a Arriaga & Lane passou a vender o seu precioso óleo neste formato, mas a metade do preço!
De resto, mesmo em publicações científicas são enaltecidas as qualidades excecionais do óleo desta marca portuguesa, quer para ingerir, quer como base de outros preparados farmacêuticos, o que se atribui à pureza, sem os aditivos usados, nomeadamente pelos ingleses, para branquear o líquido e talvez aligeirar-lhe o paladar.
Seria de esperar mais cuidado por parte dos britânicos, afinal, a eles se deve a adoção generalizada do óleo de fígado de bacalhau como fortificante rico em vitaminas A e D, barato e inofensivo. Foi o médico Charles James Blasius Williams que, por volta de 1840, o popularizou na luta contra a tuberculose e, em pouco tempo, vários países o adotaram como principal “remédio” para esse mal, assim tendo permanecido cerca de um século e chegando a ser de toma obrigatória na escola. Era também imprescindível em regimes para contrariar a magreza e a diminuição de leite em mães a amamentar, aconselhando-se truques para uma ingestão “sem repugnância”, juntando “goma arábica, açúcar, e sumo de limão ou de laranja”.
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O fiel amigo dos portugueses está presente na nossa vida e na nossa história em muitos momentos. Já aqui falei da faina maior do nosso povo: a dura pesca do bacalhau em mares gelados e longínquos.
Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal em linha
Folha de Lisboa
Nº programa – 11 out 1893
Diário Illustrado
27º ano¸ nº 9072 – 27 jun 1898
O Comércio do Porto
XXXVII ano; nº58 – 5 mar 1890
Hemeroteca Digital Brasileira
Coleção Digital de Jornais e Revistas da Biblioteca Nacional (bn.br)
A Epocha
Ano II, nº30 – 12 fev 1890
Conhecer, tratar e combater a «peste branca» - A tisiologia e a luta contra a tuberculose em Portugal (1853-1975), de Ismael Cerqueira Vieira; Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto; Edições Afrontamento – 2015. Disponível em: www.sigarra.up.pt
Jornal da Sociedade Pharmaceutica Lusitana
Texto de Silva Machado - 1888
Disponível em:
Educação e Difusão da Ciência em Portugal A “Bibliotheca do Povo e das Escolas” no Contexto das Edições Populares do Século XIX, Dissertação de Mestrado em Formação de Adultos e Desenvolvimento Local de Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo; Escola Superior de Educação de Portalegre - Instituto Politécnico de Portalegre – 2012. Disponível em Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo.pdf (rcaap.pt)