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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Na imprensa (22): em privado e à inglesa

 

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Um verdadeiro luxo a fazer corar os amigos que possam ir lá a casa para uma soirée animada. Um artigo obrigatório para quem almeja reconhecimento entre os pares, ainda que em algo de cariz tão privado. O último grito no que toca a comodidades que toda a família de gabarito almeja ter. Assim se resume a importância social destas belíssimas retretes, apenas acessíveis aos mais abastados e aos poucos, muito poucos, que, em 1901, já eram abrangidos por rede de esgoto neste País que, valha-nos isso, com tanto mar e rio, pouco necessitava dessas modernices.

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As vistosas sanitas, disponíveis em cerâmica nacional – mais em conta – ou britânica - para quem quer fazer a coisa “à séria”, com tudo a que tem direito – são vendidas na muito conhecida casa Júlio Gomes Ferreira e Cª, premiada na Exposição Universal de Paris do ano anterior.

Verdadeira instituição lisbonense fundada em 1832, ia já na terceira geração familiar. Como bem podemos ver, não se havia deixado acomodar e continuava a fornecer o que de mais sofisticado existia para o lar nos primeiros anos do século XX. Tinha porta aberta na Rua da Vitória, nº88 e, nos nºs 166 a 170 da rua Áurea, onde havia nascido.

O comerciante explica que o valor a pagar inclui o fornecimento de todo o conjunto: bacia, autoclismo, tampo e tubo de descarga. Sendo que este estabelecimento providenciava instalações completas de água, gás e eletricidade - um serviço “chave na mão”, como se diria atualmente.

Esclareça-se que estas retretes são inglesas porque foram cidadãos dessa vanguardista nação insular que inventaram (ou, pelo menos, patentearam) este tipo de sanita. Em 1860, Thomas Crapper ficou com os louros de ter concebido a descarga, o vulgar autoclismo. Quinze anos depois, foi a vez de Thomas Twyford criar a primeira sanita em cerâmica, mais fácil de higienizar que as anteriores, em madeira. Os ingleses orgulham-se tanto destas invenções que têm até um museu a elas dedicado.

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De resto, só aperfeiçoaram o que já se conhecia há muito, pois locais onde o ser humano pudesse aliviar-se existem desde tempos imemoriais, embora não houvesse esta preocupação de fazê-lo longe da vista de terceiros. Eram até comuns os sanitários públicos, vistos como espaços de convívio,  partilha de experiências e ideias – as mulheres continuam, aliás, a preservar gloriosamente este costume da Roma antiga.

Progressivamente os sanitários foram-se transformando, mas não melhorando, porque chegámos ao século XIX com uma grande imundice bem exemplificada com o hábito de lançar os dejetos pela janela ou, na melhor das hipóteses, entregando esses “presentes” a quem os levasse para longe, como as carretas de recolha ou as calhandreiras, que depois os despejavam no curso de água mais próximo.

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O Inquérito de Salubridade das Povoações Mais Importantes de Portugal, realizado em 1903, embora só abrangendo 183 localidades, mostra claramente que, na época em que se vendiam estas fabulosas retretes, mais de um terço destas terras não possuíam nem fossa nem cano de esgoto. Imagina-se o resto do País...

Hoje, em Portugal, essa é uma realidade que nos parece bem distante, mas, em todo o mundo, 4.5 biliões de pessoas ainda não têm acesso a saneamento básico.

Daqui podemos ver os sortudos que somos em dispor de sanitas - mesmo que não inglesas e artisticamente decoradas.

 

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Já aqui antes falei de calhandreiras:

Instantâneos: calhandras e calhandreiras, que não param de "calhandrar"* - O sal da história (sapo.pt)

Fontes:

Hemeroteca Digital de Lisboa

Diário ilustrado

30º ano, nº 10.022 - 1 jan. 1901

A história do vaso sanitário - ETEs Sustentáveis (etes-sustentaveis.org)

Restos de Colecção: Julio Gomes Ferreira & C.ª (restosdecoleccao.blogspot.com)

João Howell Pato, História das políticas públicas de abastecimento e saneamento de águas em Portugal, in Série Estudos nº2, Lisboa, Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, 2011. Disponível aqui:
https://repositorio.ul.pt › ICS_JPato_Historias_LAN

Imagens

https://seguindopassoshistoria.blogspot.com/2020/01/uma-historia-sobre-o-banheiro.html

Arquivo Municipal de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)

Largo de Santa Bárbara em 1901

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/003/FAN/001502

Machado & Souza

 

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