Na imprensa (24): chamuscado por miúdos
Quais são os mais comuns conselhos que tradicionalmente se dão às crianças? Não aceites rebuçados de estranhos! Não te afastes dos pais! Não brinques com o fogo! Ora, se assim é, será no mínimo estranho que a Fosforeira Portuguesa tenha lançado uma marca de fósforos que não só se denominava “Miúdos”, como ostentava a ilustração de três alegres faces de petizes, como que a dizer, “Não podes brincar com o fogo, a não ser com estes fósforos espetaculares!”
A ideia poderia apenas ser que aqueles fósforos eram pequenos, práticos, maneirinhos, mas então, para quê as carinhas larocas no rótulo? Seria mesmo para indicar aquele como produto seguro e bom para ser manuseado pela miudagem?
O anúncio, dos anos 40 do século XX, é parco em explicações e, tantas décadas depois, é talvez difícil perceber quais os objetivos de tal grafismo, que mais parece divulgar um qualquer brinquedo infantil.
A produtora destes fósforos em particular é a Fosforeira Portuguesa, sediada em Espinho e fundada em 1926. Era uma das poucas empresas nacionais autorizadas a fabricar este produto, que começava a entrar em declínio, ameaçado pelo uso generalizado do isqueiro.
Estamos em pleno Estado Novo. Tentando parar o tempo e proteger a indústria fosforeira nacional, A Direção-Geral das Contribuições e Impostos lança o Decreto-Lei nº28219, de 24 de novembro de 1937, que institui uma licença anual para o uso de acendedores e isqueiros, com pesadas multas – ou mesmo prisão, para quem se recusasse a pagar – no caso de ser encontrado com um desses dispositivos, sem ter a devida licença.
Estava também prevista a apreensão dos isqueiros e a comunicação do delito fiscal à secção de finanças respetiva, sendo as coimas a dobrar para os funcionários públicos que, obviamente, deviam dar o exemplo. Os “bufos” recebiam parte da multa!
Os fósforos Miúdos nada têm que ver diretamente com essa determinação, só abolida em 1970, mas a mesma talvez tenha contribuído para a manutenção da referida indústria, que utilizava sobretudo matérias-primas nacionais, empregava centenas de pessoas e gerava, ela própria, impostos para os cofres públicos.
Efetivamente, mesmo depois da liberalização do uso de isqueiros e ainda que com uma drástica redução da sua mão-de-obra, a Fosforeira Portuguesa sobreviveu até 2006.
Então, mudou de nome – para Chama Vermelha SA. Sabiamente, diversificou a sua atividade com outros artigos de fogo - lareiras, acendalhas, briquetes, carvão, aquecedores – mas também ventoinhas e até piscinas. É das poucas empresas no mundo que ainda produzem fósforos, embora tenham abandonado a controversa chancela “Miúdos”, que nos trouxe aqui.
As grandes instalações de que dispunham em Espinho são hoje um condomínio residencial e comercial.
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Já aqui antes falei de como
Quando o Estado faminto quis ganhar dinheiro com fósforos - O sal da história (sapo.pt)
E, também de quem peoduzia os melhores fósforos e foguetes de Lisboa:
Pândega a valer era na Floresta Egípcia do melhor fogueteiro de Lisboa - O sal da história (sapo.pt)
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Revista Panorama
Várias datas entre 1945 e 1949
Licença para uso de isqueiros e acendedores era obrigatória no Estado Novo? - Polígrafo (sapo.pt)
Aquecimento e Climatização - Chama Vermelha (chamavermelhaii.pt)
Restos de Colecção: Os Fósforos e a ‘Fosforeira Portuguesa’ (restosdecoleccao.blogspot.com)
Jornal Público 29.09.2006, texto de sara Dias Oliveira