Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Não há viagem presidencial como a primeira

rececao no brasil.PNG

 

A viagem, que teria sido feita por D. Carlos, se não tivesse sido assassinado, começou envolta em enorme expetativa, polémica quanto baste e numerosos contratempos, a começar pelo navio arruinado que levou o nosso presidente à primeira visita de Estado ao país irmão e chegou com mais de uma semana de atraso.

Partida_do_presidente_da_República,_António_Jos

A primeira visita de um presidente da República Portuguesa ao Brasil tinha tudo para correr mal e, na verdade, houve inúmeros contratempos e polémicas, desde logo pelo atraso de dez dias face à data prevista para a chegada. Bem à nossa maneira, no fim tudo bateu certo: a estadia de António José de Almeida foi um sucesso, para o qual muito contribuíram a capacidade de improviso lusitana e a descontração tropical dos anfitriões.


A expedição ao país irmão era desejada havia muito (ver À Margem). A oportunidade chegou com a comemoração do Centenário da Independência do Brasil, a 7 de setembro de 1922, data do famoso “grito do Ipiranga”.

 


O convite solene foi entregue cerca de ano e meio antes, mas os preparativos parecem ter ficado para os últimos momentos.
Numa altura em que os aviões já cruzavam os ares, a primeira viagem de um chefe de Estado da jovem república fez-se num velho e arruinado navio.

aposentos prrsidentciais no navio porto.PNG


O antiquado paquete alemão, rebatizado “Porto”, foi promovido a "hiate" presidencial. As desgastadas máquinas foram consertadas e revistas, mas pareciam conspirar contra o “passeio”.


A partida foi sucessivamente adiada e, pouco tempo depois de zarpar, teve de arribar às Canárias, devido a uma avaria.


Essas, aliás, multiplicaram-se e em todo o trajeto, provocando sucessivos atrasos aos quais também não foi alheio o fraco ritmo da marcha. A lentidão era de tal ordem que se chegou a falar de falsificação do carvão.


Deve ter sido exasperante ver passar e perder de vista vários navios que se sabia terem saído de Lisboa muito depois do Porto…

 

exposicao centenario da independencia do brasil.jp

 

No dia previsto para a chegada, 7 de setembro, ainda estavam a meio do oceano e então ensaiou-se algo atualmente muito em voga: uma festa à distância, com mensagens telegrafadas, preleções e brindes em simultâneo com o que se sabia estar a acontecer no Rio de Janeiro.


Na “cidade maravilhosa” abriram-se as comemorações e uma exposição internacional onde não será de estranhar que os nossos pavilhões não estivessem prontos, tendo de ser cobertos para não afetar a imagem global do certame. O único chefe de Estado previsto - o português – primou pela ausência.

comitiva a chegada.PNG

 

A todas estas contrariedades, António José de Almeida terá reagido com enorme calma e sentido de Estado, mas acredito que, interiormente, estivesse inconsolável com tão frouxa estreia.


A chegada à baía de Guanabara, no entanto, foi triunfal.

 

rececao no brasil2.PNG

 

A viagem havia sido acompanhada com muita ansiedade dos dois lados do Atlântico e os brasileiros prepararam uma receção apoteótica, com centenas de embarcações engalanadas e aeroplanos a pairar sobre os recém-chegados


Não se pouparam esforços para acolher a comitiva portuguesa, que alguns jornais classificaram como uma interminável “multidão de funcionários, cantores, músicos e bailarinos e até pessoas sem nenhuma obrigação”, um “bando de inúteis” impostos por vários ministros, que assim se “quiseram desembaraçar dos inúmeros pedidos” recebidos.

rececao no brasil3.PNG

 

O extenso grupo terá intrigado os brasileiros, quiçá perguntando-se se estariam perante uma versão moderna - e ainda assim reduzida - da transferência da corte para terras de Vera Cruz, em 1808.


Passado o impacto inicial, todos se esforçaram para que os dez dias que António José de Almeida se demorou por aquelas bandas apagassem da memória a má impressão causada pela atabalhoada travessia.

O nosso Presidente foi recebido por milhares de pessoas em todos os locais onde se deslocou, acolhido com muito carinho e alegria pelas entidades oficiais e pelo povo. No dia em que visitou a exposição, 300 mil pessoas foram ouvi-lo.

rececao no brasil4.PNG

 

Soube retribuir com a enorme simpatia que lhe era característica e com discursos que arrebataram as audiências, fazendo jus à fama de grande orador, que o havia precedido.


O protocolo correu leve e solto, ao ritmo tropical, mas a agenda foi repleta de cerimónias formais e outras mais ligeiras - chá-dançante, garden party, bailes, corridas de cavalos, trocas de presentes e faustosos banquetes.

Os convites foram disputadíssimos e as senhoras da alta sociedade brasileira competiram aguerridamente para apresentar as mais memoráveis indumentárias. A sua elegância, aliás, mereceu considerações de grande galanteria por parte do nosso presidente, que não deixou os créditos de macho latino por mãos alheias.

 

 

regresso a portugal.PNG

 

Portugueses e brasileiros ficaram de coração cheio com tanto afeto, embora do ponto de vista político oficial a viagem se tenha saldado apenas pela modesta assinatura de três tratados de escassa relevância.

 

A comitiva presidencial embarcou de regresso a 27 de setembro, trocando o vagaroso Porto pela boleia do inglês Arlanza.

chegada a lisboa2.PNG


Mas, o destino estava traçado: ao contrário do previsto e desejado, António José de Almeida também não chegou a tempo de comemorar mais um aniversário da Implantação da República, só desembarcando em Lisboa no dia 11 de outubro.

 

chegada a lisboa4.PNG

 


À margem

A visita de um chefe de Estado português ao Brasil foi demoradamente desejada. D. Carlos e D. Amélia chegaram a ter viagem marcada para junho de 1908 - data em que se comemorava o aniversário da abertura dos portos brasileiros a navio estrangeiros – o que só não se concretizou porque o rei foi assassinado quatro meses antes. Acresce que foi um presidente brasileiro o último chefe de Estado a confraternizar com um rei português antes da implantação da República. Hermes da Fonseca, que tinha sido eleito em março, andava por cá em outubro de 1910 e jantou com D. Manuel II na véspera deste ser deposto, algo deveras inesquecível. A instabilidade política e económica do País e a 1ª Grande Guerra não tinham criado condições para que se fizesse novo agendamento de visita, embora essa possibilidade fosse tema recorrente na comunicação social. O próprio António José de Almeida por pouco não declinou o convite, devido a problemas de saúde e ao clima de grande incerteza, inclusivamente com demissão de ministros mesmo antes da abalada.
Em período tão tumultuoso, António José de Almeida foi um rochedo. Sereno e senhor de grande tenacidade, seria o único presidente da Primeira República a levar o mandato até ao fim. Só não acertou quando, ainda na universidade, escreveu um artigo sobre D. Carlos intitulado “Bragança, o último”. Foi por pouco.
Mas isso é outra história…
………..

Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

Jornal A Capital
De nº4145, 13º ano a nº4199, 13º ano - 1 ago 1922 - 11 out 1922

Illustraçao Portugueza
II série; nº863 – 2 set 1922
II série; nº865 – 16 set 1922
II série; nº866 – 23 set 1922
II série; nº869 – 14 out 1922
II série; nº870 - 21 out 1922

Hemeroteca Digital Brasileira
http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx
O Paiz
Ano XXXVIII; nº13823 – 23 ago 1922
Visita do Dr. António José de Almeida ao Brasil Antecedentes e Concretização; dissertação de Mestrado em História Especialização em História Moderna e Contemporânea de Maria Amélia Seabra Bordalo Machado Cardoso de Sampaio; Universidade de Lisboa; Faculdade de Letras Departamento de História; outubro 2012. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/8813?mode=full


Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
https://arquivomunicipal3.cm-lisboa.pt
PT/AMLSB/EFC/000462

https://norbertoaraujoinmemoriam.files.wordpress.com/2012/12/05740-004-00745-005.png

https://www.researchgate.net/publication/240973389_Um_voo_entre_Portugal_e_Brasil_leituras_das_relacoes_luso-brasileiras_na_revista_Seara_Nova_no_inicio_dos_anos_de_1920
https://pt.wikipedia.org/wiki/Exposição_Internacional_do_Centenário_da_Independência