Napoleão, conquistador de palcos e tabuleiros
Tem nome de rei lendário e de imperador, ambos grandes líderes e estrategas militares, mas não foi pela força das armas que conquistou fama. Artur Napoleão afirmou-se, desde criança, pela mestria nas teclas e pela inteligência que o fez vencer algumas batalhas bem dramáticas, no tabuleiro.
Quem o vê, assim, pequeno, infantil, feminino até, e inocente, olhando candidamente para nós, não calcula o génio desta criança. Os pés de Artur Napoleão* não chegavam sequer ao chão, mas, aos sete anos deu o seu primeiro recital de piano e pasmou toda a gente com a mestria com que dominava as teclas.
A partir daqui, o prodígio nascido no Porto em 1843, não mais parou. Tocou por toda a Europa e foi recebido com os maiores elogios. O mesmo nas “Américas”, do Norte e do Sul. Foi, aliás, no Brasil, onde se apresentou pela primeira vez aos 14 anos, que acabaria fixar-se mais tarde.
Teve uma vida de colunável, como hoje se diria, já que era assiduamente mencionado nos jornais e requisitado para os salões de alta sociedade.
Viajou muito, por vezes com estadias demoradas em meios culturalmente muito férteis como Paris, Londres ou Nova Iorque, onde assistiu a todos os espetáculos da moda – do teatro, à música e ao desporto.
Conviveu, tocou e foi gabado pelos nomes sonantes da época, como Berlioz ou Liszt, e isto sem ter frequentado qualquer conservatório, já que aprendeu informalmente com o pai e com alguns dos maiores mestres do seu tempo.
Tocou ainda para as mais importantes casas reais europeias, que queriam ver a criança extraordinária a quem o pai também não se coibia de “roubar” um ano ou dois sempre que podia, para acentuar a singularidade do talento do filho, não escapando às críticas que o apontavam como explorador dos dotes do pequeno Artur.
Mas, o músico conseguiu fazer uma transição suave e elegante entre o menino-prodígio e o jovem dândi, “pianista virtuose” e, depois, o homem célebre e influente, sem se perder inebriado com o próprio sucesso, como tantas vezes acontece quando a ribalta chega tão cedo.
Aos 25 anos, escolheria viver no Brasil, tornando-se o mais importante comerciante de partituras e instrumentos musicais daquele País, dando a conhecer muitos artistas brasileiros que se tornariam notáveis, sendo também por isso nomeado patrono da Academia Brasileira de Música.
Não só vendia e ensinava peças de sua autoria, como continuou a compor e a atuar com enorme êxito, por todo o mundo, mantendo-se na mais alta roda onde quer que estivesse, até ao final da vida, em 1925.
Mas, o seu nome ficaria também ligado a outra atividade: é apontado como o introdutor do xadrez no “País irmão” e o dinamizador da primeira partida à distância, entre uma equipa brasileira e outra argentina, fazendo uso do telégrafo para comunicar as jogadas.
Isto deu o pontapé de saída para muitos outros desafios, tornando este jogo de tabuleiro uma atividade muito popular por aquelas paragens, pelo menos entre uma certa elite intelectual a que pertencia.
Artur Napoleão era, sem dúvida, um talento nas teclas e no tabuleiro, com uma carreira longa e triunfante.
Ao que consta, a única pateada de que foi alvo ocorreu precisamente na sua terra natal, onde tem honras de nome de rua – como, aliás, em outras cidades portuguesas.
Foi em 1858. O teatro encheu-se com portuenses indignados e enraivecidos por os programas do concerto estarem escritos em francês. Uma afronta imperdoável!
Os violentos apupos só terminaram quando o jovem, desesperado com o barulho e a exaltação dos seus conterrâneos, se deitou no banco com as mãos na cabeça. O recital pôde então continuar, mas o pai do artista teve de se escapar de forma discreta, temendo pela própria integridade física. O susto, no entanto, valeu-lhe uma choruda receita, já que o espetáculo esgotou.
Faria as pazes com a Invicta em 1865, quando foi convidado para dirigir parte da festa de inauguração do Palácio de Cristal e participou em diversas iniciativas durante a Exposição Internacional do Porto, que ali teve lugar.
À margem
No Rio de Janeiro, Artur Napoleão encontraria duas pessoas com grande relevância na sua vida: Lívia Avelar, a jovem com quem casaria apesar da oposição do futuro sogro, e o conhecido escritor Machado de Assis, que, por sua vez, desposaria a portuense Carolina Novaes, que Artur, íntimo da família, havia sido incumbido de acompanhar na viagem para o Brasil, e que escolheu o pianista para padrinho do enlace.
Para além da arte, os amigos Assis e Napoleão, duas das mais importantes figuras da cena cultural da cidade, partilhavam a paixão pelo xadrez, participaram em inúmeros torneios e contribuíram decisivamente para a divulgação da modalidade.
Bem informado e culto como era, talvez Artur soubesse do entusiasmo que outro Napoleão sentia por este jogo de tabuleiro. E, muito provavelmente, também teria ouvido falar d’O Turco, apresentado como um autómato – sim, um robô inteligente em pleno século XIX! - capaz de jogar xadrez com um humano.
Durante 84 anos, andou de exibição em exibição e convenceu meio mundo, inclusive o próprio Napoleão Bonaparte, que jogou contra esta máquina - até ao dia em que se soube ser um embuste, pois escondia no interior um jogador de carne e osso encarregue de manipular as peças.
Mas isso é outra história…
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*O nome completo é Artur Napoleão dos Santos, mas foi sempre apenas pelos dois primeiros que foi conhecido na sua intensa vida profissional e artística.
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Já aqui antes falei de outra criança-prodígio portuguesa ao piano
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Fontes
Alexandre Raicevich de Medeiros, Uma memória ímpar: a trajetória de Artur Napoleão na sociabilidade musical dos dois continentes (1843-1925), tese para obtenção do título de doutor ao programa de pós-graduação em História da Universidade do Rio de Janeiro – História Política, Rio de Janeiro, 2013.
Disponível aqui: BDTD: Uma memória ímpar: a trajetória de Arthur Napoleão na sociabilidade musical de dois continentes (1843-1925) (uerj.br)
Fernando Manuel de Menezes Falcão Martinho, Arthur Napoleão: o homem e a sua época em Portugal e no Brasil, dissertação para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre no ensino da música, Universidade de Aveiro, 2015.
Disponível aqui: Arthur Napoleão.pdf (ua.pt)
Academia Brasileira de Música
Acadêmicos – ABM (abmusica.org.br)
Napoleão Bonaparte e o xadrez - Mearas Escola de Xadrez
Arthur Napoleão – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Abertura Napoleão – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
O Turco – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Hemeroteca Digital - A arte musical : revista publicada quinzenalmente (cm-lisboa.pt)
Linha do Tempo: Ernesto Nazareth – Vitrola dos Sousa
Imagens
Arquivo Municipal do Porto
Cota: F-NV/FG-M/7/55
Foto Guedes*
*A partir da tela a óleo pintada por Miguel de Novaes (acervo da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Arquivo Público do Estado do Maranhão
Arthur Napoleão · APEM - Acervo Digital (cultura.ma.gov.br)
Daniel Lemos Cerqueira
Wikimedia Commons
File:Artur Napoleão (Maio 1889) - Emilio Biel e C.ª (Museu Bordalo Pinheiro).png - Wikimedia Commons
A partir de original de Emil Biel com dedicatória de Artur Napoleão a Rafael Bordalo Pinheiro pertencente ao acervo do Museu Bordalo Pinheiro (Lisboa)
Alexandre Raicevich de Medeiros, Uma memória ímpar: a trajetória de Artur Napoleão na sociabilidade musical dos dois continentes (1843-1925), tese para obtenção do título de doutor ao programa de pós-graduação em História da Universidade do Rio de Janeiro – História Política, Rio de Janeiro, 2013.
Disponível aqui: BDTD: Uma memória ímpar: a trajetória de Arthur Napoleão na sociabilidade musical de dois continentes (1843-1925) (uerj.br)
Arquivo Nacional, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=73410629