Nestes arrozais ocorria um fenómeno nunca visto e único no País
Só neste concelho alentejano as gentes se levantavam a favor do arroz e não contra, como no resto do País, onde se receavam as febres associadas àquela cultura. Os médicos não conseguiam explicar porque é que, em Alcácer do Sal, alegadamente, os arrozais tornavam mais sadios os ares antes doentios.
Em meados do século XIX, ainda não se sabia que era o mosquito o responsável por aquelas estranhas febres que atormentavam as populações residentes junto a zonas alagadiças e pantanosas. Pressentia-se que a cultura do arroz agravava a prevalência dessas maleitas, pelo que provocava enormes receios e até forte repúdio, chegando a aventar-se a sua proibição. Esta insalubridade gritante associada à rizicultura era desmentida por um único território, onde, a partir de certa altura, a referida produção passou a ter efeitos benéficos, que deixavam incrédulos os cientistas e o poder político, a braços com as enormes polémicas geradas no resto do País.
Alcácer do Sal baralhava todos os estudos efetuados até ali, porque neste concelho alentejano ocorria um fenómeno que não se via em parte alguma do reino e arredores.
Ali, ao invés de induzir a males e sezões, o arroz era favorável à saúde pública.
Isto mesmo foi referido no parlamento, pelo governo e alguns deputados, para além de estar expresso num relatório desenvolvido pelo facultativo médico local*.
Estas certezas contrariavam algumas opiniões que diziam ser aquela a terra mais doentia do país, bem como as conclusões a que chegara, em 1860, a comissão estatal nomeada para averiguar os impactos da cultura do arroz na sanidade das povoações próximas.
Esses técnicos, muito criticados localmente, defenderam que, também em Alcácer, aquelas deveriam ser substituídas por outras lavras, porque tornava mórbidas as terras junto às quais os seus canteiros se estendiam. Chegavam a quantificar que a produção de 16 hectolitros daquele cereal custava a vida a pelo menos um homem.
Ora, em Alcácer do Sal pensava-se o oposto.
As gentes locais reclamavam que, no passado, aquela era uma terra atreita a epidemias paludosas, equiparada até a uma porção de África em espaço europeu. Lembravam-se os mais antigos de as pessoas andarem sem energia pelas ruas, com a cabeça atada e a tez amarelada pela doença.
Ali residia até um grande número de indivíduos de raça negra, sobretudo em algumas povoações distantes da vila, que pareciam ter sido trazidos “por falta de concurso de gente branca que para estes sítios teria afluído, se não fossem insalubres, visto ser o mais fértil campo de toda a província do Alentejo”.
Antes existiam pântanos de água salgada e doce, onde materiais orgânicos animais e vegetais em putrefação emanavam miasmas que os tornavam os mais funestos que se conhecia. Esse sim era o problema que o incremento do arroz, a partir de 1850, tinha alegadamente atenuado.
Passaram a vir ranchadas de trabalhadores brancos, mais de três mil, que ajudavam a desbravar as charnecas e a converter os antigos pântanos e marinhas de sal em canteiros verdejantes.
Era vê-los na zona da Barrosinha e Sado abaixo, pela margem esquerda, até à Comporta e Paul, em nove léguas de extensão, onde eram cultivados 4.362 alqueires de arroz, a única cultura apropriada aos terrenos salgadiços que bordejam o rio, contribuindo para adoçar as terras e as tornar mais saudáveis, devido ao movimento constante das águas.
Dizia o relatório médico, que a cultura alagada, praticada em Alcácer do Sal, era o melhor remédio para evitar as doenças e que, sem este amanho, os efeitos para a salubridade seriam os piores possível, com “grande prejuízo” para a saúde e a vida de quem ali vivia.
Enquanto, de Norte a Sul, havia manifestações contra o arroz – chegando a registar-se motins populares, na zona de Coimbra - as forças vivas de Alcácer do Sal vinham protestar contra a possibilidade de se erradicar os arrozais, multiplicando-se em exposições ao rei e aos decisores políticos, com centenas de assinaturas onde se explicavam os extraordinários benefícios locais daquela cultura, onde tanto já se havia investido e que matava a fome a uma multidão de gente.
Pode parecer um pormenor, mas sublinhe-se que estes abaixo-assinados eram, frequentemente, encabeçados pelos principais detentores de terras.
Face a alegações tão convincentes, o arroz cá ficou, alargando-se um século depois com o plano de regadio do Vale do Sado, estendendo-se mesmo até ao casario de Alcácer do Sal e por outros tantos baixios incultos.
Hoje, o concelho é orgulhosamente responsável por cerca de um quinto da produção nacional.
Os mosquitos também prevalecem, mas já não transmitem o paludismo que, durante séculos, minou tanto os alcacerenses como as multidões anónimas que sempre rumaram a estes campos de trabalho.
Se a situação teria sido pior ou melhor sem arroz…é difícil de avaliar.
À margem
Muito se alterou no território de Alcácer do Sal em mais de século e meio. A comissão governamental encarregada de ver o impacto do arroz na saúde público apontava Montalvo como a área com pior salubridade, rodeava que estava de antigas marinhas de sal e canteiros de arroz. Curiosamente, foi aqui que se instalou, muitos anos depois, o primeiro aldeamento turístico do concelho, cujos proprietários receiam agora novas culturas, como os abacateiros e outras espécies sedentas das águas subterrâneas.
E, independentemente das teorias mais ou menos instrumentalizadas sobre a bondade da forma como aqui se produzia arroz, esta região seria, já nos anos 30 do século XX, considerada um dos mais persistentes focos de malária em solo nacional.
Nesta época, aliás, registou-se uma recrudescência da doença que suscitou, em pleno Estado Novo, a apresentação de queixas da população e entidades do concelho de Alcácer do Sal, mas também de Barreiro, Grândola, Sesimbra, Setúbal, Sines, Almada, Montijo, Seixal, Palmela e Alcochete - junto do Ministro do Interior e Direção-Geral de Saúde, pedindo uma ação mais eficaz contra a malária.
Apesar desse reconhecimento, foi em Benavente que primeiro se instalou uma estação experimental de luta anti-sezonática. Em 1932 foram criados postos em Samora Correia, Santo Estevão, Salvaterra de Magos e Quarteira, bem como um dispensário, em Alcácer do Sal, que passou a estação, no ano seguinte, por ironia, instalada no antigo solar do visconde, grande proprietário e produtor de arroz.
Em 1934, foi finalmente criada a Estação para o Estudo do Sezonismo, em Águas de Moura – Instituto de Malariologia.
Para além da investigação e tratamento dos doentes, foram levadas a cabo numerosas experiências com o intuito de erradicar o mosquito, nomeadamente com o uso de peixes que comessem as suas larvas. O mais eficaz, no entanto, parece ter sido a aplicação generalizada, a partir da década de 40, de DDT, considerado o primeiro pesticida moderno que, efetivamente, foi muito eficaz com os insetos vetores da doença. Em Portugal, a malária está erradicada desde 1973.
Como não há bela sem senão, posteriormente, o DDT revelaria igualmente efeitos negativos na saúde humana e animal. Mostrou que, com o tempo, propiciava também a criação de “super” mosquitos, resistentes à sua ação.
Mas isso é outra história…
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* um equivalente a delegado de saúde.
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Fontes
Diário do Governo
21.11.1848; 08.02.1859; 09.02.1859; 21.02.1859; 26.02.1859, 23.03.1859; 28.02.1861; 26.07.1861; 17.01.1862; 25.01.1862; 16.03.1862;10.06.1862.
Disponível em digigov.cepese.pt
José Barata da Silva, Reflexões sobre os arrozaes e as Comissões em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1861. Disponível em books.google.com
Relatório sobre a cultura do arroz em Portugal e sua influência na saúde pública, Comissão criada pela portaria de 16 de maio de 1856, Lisboa, Imprensa nacional, 1860.
Mónica Alexandra de Almeida Monteiro Saavedra, “Uma Questão Nacional” - Enredos da malária em Portugal, séculos XIX e XX, tese para obtenção de doutoramento em Ciências Sociais Especialidade: Antropologia Social e Cultural, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2010. Disponível em repositório.ul.pt
Fernando Borges, A Malária no Vale do Sado – perspetiva histórica - A Memórias do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, Comunicações do simposium satélite, Palmela, 29 nov. 2001 – 07 abr. 2002.
Imagens
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
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Fernando Borges, A Malária no Vale do Sado – perspetiva histórica - A Memórias do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, Comunicações do simposium satélite, Palmela, 29 nov. 2001 – 07 abr. 2002.
http://www.herdadedacomporta.pt/pt/gca/index.php?id=14
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