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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O alentejano que governou o Brasil com mão de ferro

António Salema foi uma figura controversa. Considerado um bárbaro cruel, por uns, e um grande governador, por outros; tem uma rua com o seu nome no Rio de Janeiro, mas é um desconhecido em Alcácer do Sal, onde nasceu.

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Um alcacerense ficou na história do Brasil. António Salema, à luz dos nossos dias, considerado um bárbaro responsável pela morte de milhares de índios, é apontado como um extraordinário governador, dando nome a uma rua do Rio de Janeiro. Embora os métodos que usou para alcançar os seus objetivos tenham sido, no mínimo, pérfidos, a ele se deve a conquista da região de Cabo Frio, ganha à custa da expulsão dos nativos, abrindo espaço para os colonos se fixarem, prosperarem e fortalecerem os seus domínios.
António Salema, homem de leis, distinto professor na Universidade de Coimbra, foi inesperadamente promovido a Governador-Geral do Brasil, para onde tinha ido apenas desempenhar funções na justiça, em Pernambuco. D. Sebastião não deve ter-se arrependido deste voto de confiança, visto que durante este mandato se fizeram grandes progressos em termos territoriais.

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Na época, o Brasil encontrava-se dividido em duas áreas, cada uma com o seu governador. Salema, apontado como “homem de cultura”, “inteligente, sofisticado para a época” e “com grande visão”, ficou responsável pela área a sul de Porto Seguro, onde esteve entre 1574 e 1577. Ao contrário dos seus antecessores, com grandes ligações à terra, este novo governador não manifestava qualquer interesse nos costumes dos povos locais. Estava ali com uma missão, que iria desempenhar rápida e eficazmente para retornar a Lisboa com pretensões reforçadas. Para isso tinha que se impor perante os portugueses e os índios. Pela força, claro!


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Na equação, os nativos foram os únicos que ficaram a perder, primeiro subjugados por alterações que Salema introduziu nas leis sobre a sua escravização, depois pela expedição que levou a cabo, com 400 europeus e 700 índios tupiniquins à zona de Cabo Frio, onde os franceses tinham uma feitoria e comerciavam livremente com apoio dos indígenas. A incursão armada pôs fim a esta “pouca vergonha”, atacando ao mesmo tempo os inimigos estrangeiros, os tamoios e os tupinambás.

Os franceses fugiram e não mais regressaram aquelas paragens; a primeira tribo foi praticamente dizimada e a segunda debandou para o interior, abandonando as suas antigas terras, para gáudio dos portugueses, que ali puderam estabelecer plantações de cana de açúcar. “Da crueldade de Salema, veio a paz”.

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Esta mortandade, no entanto, foi “suave” quando comparada com as consequências da sua tenebrosa argúcia contra os índios que viviam à beira da lagoa Rodrigo de Freitas. Estes não eram especialmente agressivos, mas estavam em terrenos apetecíveis para os colonizadores, razão mais do que suficiente para o governador ter espalhado na zona peças de vestuário infetadas com varíola.

O resultado foi o extermínio da tribo, que permitiu a implantação do engenho d’El Rei, essencial para a produção de açúcar a preços mais competitivos e um atrativo extra para a fixação de povoadores nesta zona, onde hoje se localizam os elegantes bairros Ipanema e Leblon.


Não é pois de estranhar que António Salema seja considerado um homem cruel e impiedoso e, em simultâneo, “um grande governador”, pelo ponto de vista dos colonos comuns, que buscavam uma vida melhor no novo mundo e encontravam muita dureza nesse caminho. Este alentejano de Alcácer do Sal foi mentor das primeiras obras dirigidas ao bem-estar e qualidade de vida da população do Rio de Janeiro, entre as quais se destaca a união da cidade, ao mandar construir uma importante ponte sobre o rio Carioca, que perdurou até ao século XIX.
Escusado será dizer que, com tão retumbantes resultados, quando regressou à metrópole, tinha à sua espera um bom lugar: desembargador dos agravos.
Consta que registou para memória futura o relato dos seus feitos, mas tal escrito ter-se-á perdido, ficando por conhecer a sua versão dos acontecimentos, uma vez que morreu em 1586, em Lisboa.

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À margem
António Salema foi sepultado no Convento de São Francisco, um gigantesco conjunto de edifícios que ocupava todo o quarteirão hoje compreendido entre as ruas Capelo, Ivens, Serpa Pinto e Vítor Cordon, englobando os atuais edifícios da Escola Superior de Belas Artes e do Museu Nacional de Arte Contemporânea (Chiado). Fundado em 1217 por Frei Zacarias, munido com credenciais do próprio Francisco de Assis, em tão longa história foi palco de numerosos acontecimentos, nomeadamente diversas reuniões das cortes gerais do reino. Foi vítima de dois grandes incêndios e permaneceu de pé até ao dia 1 de novembro de 1755. O grande terramoto de Lisboa e o incêndio que o seguiu destruíram “suas riquezas, sua igreja de três naves, sua preciosa livraria, obras de arte e raridades”, sobrando apenas um cálice e um incensário. No mesmo dia, ali terão perecido 600 pessoas que, em conjunto com os restos mortais de António Salema, ficaram soterradas para sempre. Ali nasceram depois diversos edifícios, nomeadamente o que serviu de biblioteca nacional até 1965 e, no local da antiga igreja, tentou-se erguer um novo templo, tão magnífico e colossal que não chegou a estar concluído quando se extinguiram oficialmente as ordens religiosas, acabando desmontado. Daí provêm, por exemplo, as colunas jónicas integradas na fachada do Teatro Nacional D. Maria e da Escola Politécnica.
Mas isso é outra história...

 

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Fontes

Compêndio da história do Brasil; pelo general José Ignácio de Abreu e Lima; Tomo I; casa dos Editores Eduardo e Henrique Laemmert; 1843. Disponível em:
https://books.google.pt/books?id=v98FAAAAQAAJ&pg=PA85&lpg=PA85&dq=%22ant%C3%B3nio+salema%22+brasil&source=bl&ots=gKeLyZ_pxj&sig=ACfU3U0TAEOtlqRcTZWimSVF8jNN7R8STw&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwiYmILShuHgAhUM3xoKHfjJDg04ChDoATAGegQICBAB#v=onepage&q=salema&f=false


memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=9366&pesq=cache:WuCwYMSNtPsJ:memoria.bn.br/docreader/WebIndex/WIPagina/089842_07/9366&url=http://memoria.bn.br/docreader


http://copacabana.com/historia-do-leblon


1565 – Enquanto o Brasil nascia, de Pedro Doria; edição Hasper Collins; 2012; Rio de Janeiro, 2017. Disponível em:
https://books.google.pt/books?id=OzZCDwAAQBAJ&pg=PT102&lpg=PT102&dq=%22ant%C3%B3nio+salema%22+brasil&source=bl&ots=OORcZecaxg&sig=ACfU3U3fiyqzX_PvMPWkxAQnx7UDZjRv3Q&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwiO2pOJheHgAhUSx4UKHQ6qDqcQ6AEwDXoECAIQAQ#v=onepage&q=%22ant%C3%B3nio%20salema%22%20brasil&f=false

Um bárbaro e cruel da história do Brasil e.e. Antônio Salema, de Sylvio Salema Garção Ribeiro. Parcialmente disponível em

https://www.amazon.co.uk/...Brasil-Antônio-Salema/.../B00181CB...

O processo histórico da ocupação do território brasileiro, ensino fundamental, 7º ano; Governo do Estado do Pernambuco; Secretaria de Educação. Disponível em:
www1.educacao.pe.gov.br


Brasil – 500 anos de povoamento; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE Centro de Documentação e Disseminação de Informações; 2007. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6687.pdf

https://pt.wikipedia.org/wiki/Convento_de_São_Francisco_da_Cidade

http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/74984

Imagens
biblioteca nacional digital
LEGRAND, C., fl. 1839-1847
Uma vista do rio Doce, no Brasil / C. Legrand lith.. - [S.l. : s.n., ca. 1850] (Lx.ª : : Lith. de M. L. da Ctª). - 1 gravura : litografia, p&b

Cota do exemplar digitalizado: e-3980-p


https://oglobo.globo.com/rio/um-rio-de-fatos-alem-dos-mitos-6234206

www.wikipedia.com
Capitanias na Costa Brasileira, numa organização diferente da estabelecida na primeira metade do século XVI(Joan Blaeu; domínio público.
Mapa do Brasil no Atlas Miller de 1519, Pedro Reinel; Lopo Homem; António de Holanda; domínio público.

Índios Tupinambás, autor desconhecido, domínio público.


Índios tupinambás guerreiros; gravura do livro de Jean de Léry, Histoire d'une voyage...1578;
Gravura do livro de Hans Staden; Wahrhaftige Historia und Beschreibung, ambas em

Brasil – 500 anos de povoamento; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE Centro de Documentação e Disseminação de Informações; 2007. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv6687.pdf

 

 

 

 

 

 

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