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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O ano de todos os lutos

 

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Acha que 2020 foi mau? Pense de novo, Portugal já viveu bem pior e reergueu-se. Este ano passou sem deixar saudades, é verdade. Para muitos terá sido o pior das suas vidas, o mais funesto em muitas gerações…mas, acredite-se, há menos de um século, experimentámos períodos ainda mais tristes e desesperantes, trágicos e de má memória que, ainda assim, foram superados.

 

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Se houve anos terríveis num passado não tão longínquo, 1918 foi, sem dúvida, dos que mais martirizaram o povo português e a humanidade em geral, com a particularidade de, na época, não existir bem uma consciência da gravidade da situação.

Jornais havia, claro, e enchiam-se páginas com o infortúnio que nos atacou nesses 12 meses em que nada de mau faltou.

hospital peumonica.PNG

 

Mas, como poucos sabiam ler, desconhecia-se a dimensão da desgraça que vinha em muitas frentes: uma pandemia, esforço de guerra na Europa e em África, crise, miséria, instabilidade política e social, que, em vão, se tentou apaziguar decretando, à vez, Estado de Emergência e Estado de Sítio.  Em dezembro, para culminar tamanho desarranjo, ainda mataram o Presidente da República, o que provocou a comoção geral numa nação que o chorou com tanto fervor como o contestou e aclamou em vida.

filas para comprar comida2.PNG

 

Logo em janeiro, percebeu-se que a doença não nos deixaria a porta: o Porto foi assolado por um forte surto de tifo e, quatro meses depois, tal como o vírus que hoje nos atormenta, a pneumónica deu os seus sinais na primavera, disseminando-se por todo o País, a partir de Espanha. Foram três as vagas sentidas, sempre com ampliada intensidade.

Proibiram-se procissões e feiras; instituíram-se meios de proteção, como máscaras e a lavagem frequente das mãos. Compreensivelmente, quem quase morria de fome e não tinha acesso aos bens essenciais – desde logo devido à guerra que minava toda a Europa – não deu muita atenção a tais conselhos.

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À luz do que hoje sabemos, é até difícil observar as fotografias de então sem sentir um certo arrepio ao ver as pessoas tão juntas e desprotegidas, lado a lado com os numerosos anúncios da necrologia.

Também não havia conferências de imprensa diárias, mas estima-se que um total de mais 136 mil portugueses tenham perecido com essa fatídica gripe que, ao contrário do Covid 19, atacava preferencialmente os mais novos.

Nesse ano, houve mais mortes do que nascimentos em Portugal.

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Como se toda esta tragédia não fosse suficiente, a hecatombe cai sobre o Corpo Expedicionário Português que, bravamente, lutava na Flandres com os parcos meios de que dispunha.

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Milhares de soldados nossos são aprisionados. Mas esses são os afortunados, porque os outros ficaram caídos no campo de La Lys (na imagem em cima). Foi em abril.

No mês seguinte, morre o muito popular ator Augusto Rosa cujo funeral mobiliza largas centenas de Lisboetas (imagem ao lado).

 

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Já em outubro, altura em que a terceira vaga da “espanhola” assolava o nosso território, dá-se mais um desaire. O nosso navio Augusto Castilho é abatido quando se interpunha entre um submarino alemão e o vapor português S. Miguel, acabando por ser o alvo preferencial do inimigo. Dois dias depois, a 16, uma transferência de presos em Lisboa degenerou em tiroteio do qual resultaram seis mortos.

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Não foi o primeiro tiroteio do ano, nem seria o último, como se verá, mas foi mais um foco de inquietação numa Capital que, como o resto do País, viu incontáveis tumultos, greves, motins, filas para comprar quase todos os bens de primeira necessidade e muita fome.

 

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Em novembro, chega finalmente uma boa notícia: é assinado o armistício que põe fim à I Grande Guerra. O povo festejou e respirou de alívio, não porque as suas condições de vida se alterassem substancialmente no imediato, mas porque, pelo menos, havia a esperança de as coisas melhorarem no ano que se avizinhava.

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Pois, o alento pouco durou, porque 11 dias antes do Natal, em plena Estação do Rossio, o presidente, Sidónio Pais, o homem que, durante algum tempo tinha tentado pôr alguma ordem num país a ferro e fogo, cai assassinado a tiro entre a multidão que o cercava - na imagem, o seu enterro.

Por essa altura, os portugueses estavam tão desejosos de ver o ano terminar como nós de nos vermos livres de 2020. E, se ainda acha que não houve pior do que este de que agora nos despedimos, então resta-lhe fechar os olhos e fazer votos para que o que aí vem traga melhores notícias.

Bom 2021!

 

À margem

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Sidónio Pais governou o País com pulso de ferro, contribuindo para instaurar o que ficou conhecido como a “República Nova”, liderada por indivíduos com origens e sensibilidades diversas, insatisfeitos com o rumo que o sistema político saído do 5 de outubro de 1910 estava a levar. Efetivamente, Portugal não tinha paz, nem estabilidade. Sucediam-se governos, a economia estava extremamente fragilizada e imperava um clima de contestação, até porque a pobreza grassava entre as classes mais baixas e algumas das promessas da República haviam ficado por cumprir. É neste contexto que o “presidente-rei” – como lhe chamou Fernando Pessoa, num elogio fúnebre - vai destacar-se, com medidas, ora populistas, ora ditatoriais, passando por cima da Constituição de 1911 e do Congresso. Um ano depois de tomar posse pela primeira vez à frente do Governo, não sobreviveu ao segundo atentado no espaço de dez dias, o que deixou o País numa situação ainda mais periclitante. A estabilidade só chegaria quando subiu ao poder outro político com espírito autoritário e que, como Sidónio, primeiro havia experimentado a pasta das finanças.

Mas isso é outra história…

 

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Fontes

Fundação Mário Soares | Aeb | Crono | Ano (fmsoares.pt)

Pneumónica - NOVA FCSH (unl.pt)

Sidónio Pais - ANTIGOS PRESIDENTES: - PRESIDENCIA.PT

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Jornal a Capital

N.º 2644 ao n.º 2988 – janeiro a dezembro 1918

 

Illustração Portugueza

N.º 620 ao n.º 671 – janeiro a dezembro 1918

 

Hemeroteca Digital Brasileira

Coleção Digital de Jornais e Revistas da Biblioteca Nacional (bn.br)

Diário Nacional

Ano III; nº 713 – 14 outubro 1918

 

Sidónio Pais – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Sidónio Pais - Infopédia (infopedia.pt)

O Afundamento do Navio Augusto Castilho @ CinePT-Cinema Portugues [pt] (ubi.pt)

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

X-arqWeb (cm-lisboa.pt)

Anselmo Franco

PT/AMLSB/EFC/001998

Joshua Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001415

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001057

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