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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O artista mais espalhafatoso do País (e arredores)

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Extravagante, escandaloso e com uma altíssima opinião de si próprio. Romão Gonçalves era cantor e artista de cinema, mas para a história ficaram sobretudo os episódios mais caricatos da sua vida, como quando se atirou ao Tejo entoando o hino belga; as filmagens que fazia seminu por Lisboa ou o licor que inventou, segundo ele, capaz de ressuscitar os mortos.

 

A vida de Romão Gonçalves dava um filme. Na verdade, deu pelo menos 9 fitas que, por mais hilariantes que sejam, não fazem jus às inúmeras e anedóticas peripécias que marcaram a existência deste artista português dos sete ofícios. Espalhafatoso, ousado, escandaloso, muito seguro de si e dos seus dotes, o “tenor supremo” - que ficou também conhecido por cantar enquanto nadava nas águas do Tejo - foi ator de cinema, empresário de casas de espetáculos e jogo, criou um licor milagroso e até arriscou pisar o ringue de boxe, não com os melhores resultados para a sua adorada face ou os seus vistosos dentes cravejados de pedras preciosas e ouro.

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Romão Gonçalves era uma das mais bizarras figuras que marcavam a atualidade portuguesa nos anos 20 e 30 do século XX. Havia quase sempre uma proeza sua para comentar, uma notícia no jornal ou um espetáculo memorável em que tanto se distinguia a sua voz poderosa, capaz de inigualáveis “dós de peito”*, como as suas excentricidades.

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Os dotes vocais não convenceram os puristas do canto lírico deste retângulo à beira mar plantado, que, sem dó, o bridavam com pateadas e objetos arremessados para o palco. Na sua opinião, só a ignorância explicava esta rejeição a um talento incomparável como o seu.

Aliás, pavoneava-se em Lisboa e no Porto alardeando os êxitos estrondosos que alegadamente obtinha em países “mais cultos” por essa Europa fora e no Brasil, onde, efetivamente, terá conseguido um assinalável sucesso.


Se não tinha entrada nos teatros alheios, teria nos seus próprios espaços.

Foi assim que se tornou empresário do club A Fila – na rua 1º de Dezembro, em Lisboa – onde clientela mais ou menos duvidosa também jogava à roleta, enquanto Romão Gonçalves cantava o que queria.
Quando se tornou artista da 7ª arte, comprou o Cinema Tortoise, em Campolide. Modesto como era, batizou-o com o seu nome.


Assim era Romão Gonçalves.
Rosto redondo, emoldurado por umas negras e vistosas patilhas, olhos pequenos. Alto e corpulento, sempre acompanhado pelo seu amado cão, apresentava-se invariavelmente em leve fato de linho, no estio, e feérico casaco de peles, durante o Inverno.

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Mas, isso era quando não chocava meia Lisboa ao aparecer seminu nas ruas mais movimentadas, enquanto era filmado para uma das suas fitas cinematográficas** em que era sempre o protagonista e se retratavam as aventuras da sua movimentada existência… como o dia em que se atirou ao Tejo cantando o hino belga e nadando ao encontro do barco que transportava os reis daquele País, em visita a Portugal.

Foi um ato inusitado que causou enorme impacto, precisamente o objetivo de Romão Gonçalves.

Adorava dar nas vistas, mas isso nem sempre corria da melhor forma: na sua memória – e no corpo também - terá ficado durante muito tempo marcado outro episódio em que, em pleno Coliseu dos Recreios, após assistir a um combate de boxe, se levantou num impulso irresistível e desafiou o vencedor para uma luta – mano a mano – no dia seguinte.


Talvez porque estava habituado a usar os punhos nas frequentes rixas que desencadeava na noite lisboeta, sobreviveu por milagre a tanta pancada. Ou seria porque tinha antes bebido um trago ou dois do seu Romanini?


De tonalidade verde-esmeralda, o licor tinha origem em receita inventada pelo próprio Romão, e anunciava ser o melhor do mundo. Estava à venda nos estabelecimentos mais chics de Lisboa e no Jerónimo Martins & Filhos. Rezava a publicidade que era atestado por médicos portugueses e estrangeiros para recompor os órgãos respiratórios, fazendo maravilhas à voz e aos músculos.

Mais! Este “maná celeste” dava “volúpias infinitas”, deleitava os vivos e ressuscitava os mortos.

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Enfim, um verdadeiro portento, um assombro, um prodígio... como o próprio Romão Gonçalves, maior e mais extravagante que qualquer personagem por si interpretada.

 

À margem
Romão Gonçalves era uma figura peculiar que atraía outras da mesma índole, como o aventureiro e espião russo Boris Skossyreff. Uniu-os, provavelmente, a mania das grandezas, a enorme apetência para se autopromoverem e, parece, o gosto pela natação. Boris tentou - pasme-se! - tomar o poder em Andorra e, apesar de reconhecer que não tinha qualquer legitimidade histórica para o fazer, comportava-se como um monarca. Teve um reinado curto, até ser definitivamente expulso do território em 1934 e depois também de Espanha. Acabou por passar umas temporadas no nosso País, mais propriamente em Olhão, onde os pescadores que diariamente o transportavam à ilha do Coco para umas braçadas na Ria Formosa lhe chamavam Mano-rei. Foi ali, antes de enfrentar uma série de outras peripécias em Espanha, França e Alemanha, que Boris I – assim se intitulava – conheceu o nosso célebre tenor. Ao que consta, este ter-se-á oferecido para o apresentar ao homem certo para, furtivamente, o levar de barco a Marrocos, para onde o russo queria rumar. Tratava-se de Zé da Mónica, ele próprio com uma boa série de histórias para contar, já que andava havia meses escondido da polícia política, incógnito em casa de familiares, só saindo de noite, encapuzado ou vestido de mulher.
Mas isso é outra história…

……………………….
*Dó de peito é uma nota musical extrema, muito difícil de ser cantada pelos tenores. É usada no final de algumas composições musicais que concluíam em Dó, o qual foi elevado em uma oitava para aumentar a intensidade e o dramatismo.

** Os filmes, cujo paradeiro se desconhece, são estes:

- Romão Gonçalves, Boxeur e Atleta (1920)
- A Visita do Rei dos Belgas a Lisboa (1920)
- As Aventuras do Tenor Romão - O Dó de Peito (1927)
- Romão Gonçalves, Boxeur e Atleta (1920)
- Romão, Chauffeur e Mártir (1920)
- A Visita do Rei dos Belgas a Lisboa (1920)
- Aventuras de Agapito (1924)
- As Aventuras do Tenor Romão - O Dó de Peito (1927)
- As Aventuras do Tenor Romão - O Dó de Peito (1927)

Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

Illustração Portugueza
II série; Nº 687 – 21 abr 1919
II série; Nº 730 – 16 fev 1920
II série; Nº 789 – 19 abr 1920

Jornal A capital
10º ano; Nº3457 – 8 fev 1920
11º ano; Nº3683 - 1 nov 1920
11º ano, Nº3591 – 31 jul 1920

Sempre fixe – Semanário Humorístico
3º ano; Nº114 – 26 jul 1928


http://www.cinept.ubi.pt/pt/pessoa/2143688181/Rom%C3%A3o+Gon%C3%A7alves

http://olhai-lisboa.blogspot.com/2018/04/romao-goncalves.html

http://estespublicitarios.blogspot.com/2010/09/licor-romanini.html

http://www.cinemateca.pt/getattachment/db647be4-65ef-493d-9835-c2b5f1abb702/Expansao-nacional.aspx

https://restosdecoleccao.blogspot.com/2015/07/campolide-cinema.html

http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/2013/

https://academia_santa_cecilia.blogs.sapo.pt/4491.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Boris_Skossyreff

https://www.rtp.pt/play/p5177/e379383/memoria-fotografica?fbclid=IwAR19eErRZHAe6By2GEPIkdvZ70Gd0VEDV8exYP-ny4oqscniEq-bKXt4dwY
O esporte no cinema em Portugal – de Victor Andrade de Melo; Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil - Rev. Port. Cien. Desp. v.8 n.1 Porto abr. 2008. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-05232008000100016

https://en.broadwayblogspot.com/3660-boris-i-ruler-of-andorra-from-the-russian-empire.html

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