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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O colecionador de caveiras

 

ferraz de macedo 2.jpg

Durante mais de uma década, reuniu ossadas não reclamadas nos cemitérios de Lisboa. Tinha mais de mil crânios, que mediu e testou inúmeras vezes, até os conhecer como às suas próprias mãos. O “Ferraz das caveiras” criou a primeira coleção de esqueletos identificados do País, destruída pelo fogo em 1978.

 

ferraz de macedo3.JPG

Formado em farmácia e medicina, o “Ferraz das caveiras”, como era conhecido pelos vizinhos da casa do bairro da Graça, em Lisboa, onde vivia, foi também criminologista, poeta e antropólogo – ainda antes dessa ciência ser ensinada em Portugal. A sua sede de conhecimento era tal que, depois de estudar no Brasil e numa Europa mais avançada em termos científicos, por iniciativa própria, criou a primeira coleção de esqueletos identificados do País, correspondentes a mais de mil indivíduos, com os quais contestou as teorias em voga no século XIX, provando que criminosos e heróis não se distinguem pelos ossos e que os povos do sul podem ser tão inteligentes como os nórdicos.

 

 

casa onde viveu ferraz de macedo anexa a capela de

 

Francisco Ferraz de Macedo era um “ilustre e honrado obreiro das ciências naturais”, assim descrito pelo escritor Fialho de Almeida, seu amigo e vizinho. Tão embrenhado estava nas suas pesquisas, que isso alheava-o “de tudo, dos gozos materiais, da vida de família, da solidão e desconforto austero” da sua casa, onde tudo era “sumário e pobrezinho”, “da canalhice de uns, da prosápia de outros”, de qualquer preocupação com o aspeto físico, sempre asseado, mas trapalhão na aparência, num tipo “estou-me nas tintas campónio”, muitas vezes incompreendido e gozado por mentes não tão prodigiosas, mas mais alertas para as questões mundanas.


Vivia sobre a sacristia da capela de Nossa Senhora do Monte (na imagem), tendo por companhia, apenas uma velha criada, três rouxinóis criados por si e todos os gatos dascapela de nossa senhora do monte.JPG redondezas, que alimentava com desvelo.

 

 

 


A mansarda estava “empilhada até ao teto de sacos de serapilheira numerados e catalogados”, cada um cheio com “até 20 crânios” humanos, que conseguida obter de “coveiros soturnos e administradores de cemitérios desconfiados”.

ferraz de macedo 1.jpg

 

Parece mórbida e bizarra tal recolha, mas a informação resultante da análise destes ossos foi essencial para a criação de um padrão quanto a idades e sexo, bem como sobre determinadas características físicas e patologias na população, pois que Ferraz de Macedo registara “dimensões exatas, configurações, anomalias, ângulos, espessamentos, cristas, apófises, todas as diferenciações subtis que ao olho científico revelam o psiquismo misterioso do carnívoro de astúcia e sedução que em nós dormita”.


Dedicou especial atenção ao estudo osteológico dos criminosos, comparando-os com as pessoas ditas “normais”. Pela sua mesa de trabalho passaram os crânios e outras partes do corpo dos mais afamados patifes do País, como o assassino em série Diogo Alves*.
Com estes estudos, conseguiu arrasar as teorias do aclamado Cesare Lombroso, defensor da ideia de o crânio do homem criminoso diferir do do cidadão comum e serem os seus atos resultantes desse determinismo físico e não da sua escolha ou da influência social. Contestou também a visão que baseava no formato da cabeça o conceito de existirem raças superiores e raças inferiores.
A sua especial dedicação ao estudo dos criminosos e das suas características, nomeadamente recolhendo dados que permitiam a sua identificação futura e mais fácil captura, contribuiu para a implementação de postos antropométricos nas cadeias portuguesas.

colecao ferraz de macedo.jpg

 

Foi, já em fim de vida, diretor dos Serviços Antropométricos e Fotográficos do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.


Publicou numerosos trabalhos, livros, estudos e chegou a representar Portugal em congressos internacionais de antropologia.

 

O seu espólio foi doado ao Museu Barbosa du Bocage**, hoje Museu Nacional de História Natural e da Ciência que, na madrugada do dia 18 de março de 1978, um incêndio alegadamente provocado por questões políticas destruiu quase por completo. Uma verdadeira tragédia para a ciência em Portugal, pois perderam-se vastas coleções de biologia e zoologia e o conteúdo da importante biblioteca. Da valiosa coleção osteológica do “Ferraz das caveiras” restaram apenas 30 crânios e o livro de medidas craniométricas.

À margem

colecao cranios pb.jpg

Entre 1981 e 1991, Luís Lopes - seguido de Hugo Cardoso - tratou de compor uma coleção de referência, tal como havia feito Francisco Ferraz de Macedo, um século antes. Com origem nos cemitérios de Alto de São João, Prazeres e Benfica (Lisboa), reuiram-se 1692 esqueletos e cerca de 75 indivíduos não identificados, num conjunto muito útil para traçar o perfil antropológico da população e que é um dos mais bem documentados do mundo.

No nosso País, no entanto, existem outras coleções de referência, em Évora, Porto e Coimbra, com um total de cerca de 4500 indivíduos identificados.

Mas, há mais entidades que possuem ossos humanos, casos do Museu Nacional de Arqueologia e do Laboratório de Arqueociências. A Sociedade de Geografia de Lisboa tem à sua guarda a Coleção Silva Telles, formada por ossadas provenientes dos cemitérios de Luanda, Benguela e Cabinda e as escolas de belas artes possuem também recursos neste domínio. É que, para bem pintar, desenhar e esculpir o corpo humano, é preciso compreendê-lo em profundidade, saber como ossos funcionam, sob músculos e pele. Em célebres escolas de arte italianas as aulas de anatomia tinham lugar em hospitais e o grande Michelangelo efetuava dissecações pelas suas próprias mãos, em corpos humanos e não humanos, para melhor os conhecer.
Mas isso é outra história...
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*A Diogo Alves são atribuídos numerosos assassinatos, nomeadamente no aqueduto das Águas Livres.
**Em homenagem ao zoólogo José Vicente Barbosa du Bocage, familiar do conhecido poeta.
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
Serões – Revista ilustrada
nº30 – dez. 1907
Métodos e Técnicas de Antropologia Criminal em Portugal: Da criação do Posto Antropométrico do Porto aos Institutos de Criminologia (1880-1940) – Dissertação de Mestrado em Criminologia de Mónica Sofia Ferreira Sousa – Faculdade de Direito da Universidade do Porto; setembro 2018. Disponível em https://www.academia.edu/38420879/Apresentação_Antropologia_Criminal

A Coleção Osteológica da Faculdade de Belas Artes - Inventariação e preservação da coleção dedicada ao ensino; dissertação de Mestrado em Museologia e Museografia de Diana Moreira Dinis – Universidade de Lisboa; 2016. Disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/29352/2/ULFBA_TES_1039.pdf

http://memoria.ul.pt/index.php/Colec%C3%A7%C3%A3o_Osteol%C3%B3gica_%E2%80%98Silva_Telles%E2%80%99_(Dep%C3%B3sito_da_Sociedade_de_Geografia)

https://www.museus.ulisboa.pt/pt-pt/colecao-antropologia

http://ww3.aeje.pt/avcultur/AvCultur/ArkivDtA/Vol01/Vol01p249.htm

https://www.publico.pt/2016/12/06/ciencia/noticia/onde-estao-as-coleccoes-portuguesas-1753757