O Desventurado e a última ama real
Manuel II nasceu numa época de grande inquietação, em que todos os sinais apontavam para a iminência de uma desgraça. Longe de se saber que aquele seria o nosso último rei, Maria dos Anjos foi a derradeira ama de leite da monarquia portuguesa.
Maria dos Anjos Esteves foi a última mulher a alimentar, com o seu leite, um futuro rei de Portugal. A longa “linhagem” de amas reais, que havia muito deixara de ser nobre, teve o seu epilogo nesta jovem de São João da Pesqueira, encarregue de tão delicada tarefa, certamente não isenta de dilemas e contrariedades… precisamente o mesmo tipo de sentimentos enfrentados pelo menino que ajudou a criar, D. Manuel II, O Desventurado*.
Quando, com apenas 22 anos, foi escolhida para amamentar o infante D. Manuel, ninguém imaginaria que este viria a ser rei, porque, tal como o outro Manuel, O Venturoso, que no século XV o precedeu em nome, não era o herdeiro direto do trono.**
O segundo Manuel, no entanto, teria um reinado bem mais curto e doloroso. Até o seu nascimento ocorreu num período de enorme agitação e pleno de sinais que poderiam ser entendidos como funesta premonição… para quem acreditasse nisso, obviamente.
D. Manuel II viu a luz do dia no dia 15 de novembro de 1889.
Nas mentes da corte estavam bem presentes duas mortes muitos recentes. Do seu avô, o rei D. Luís, cujas exéquias ainda decorriam, e do infante D. Augusto, irmão deste. A homilia comemorativa do nascimento do bebé foi até realizada na igreja de S. Domingos, porque a de S. Vicente mantinha as decorações das cerimónias fúnebres.
O parto foi envolto em grande apreensão, dado o anterior desaire ocorrido em Vila Viçosa, quando a rainha deu à luz uma criança prematura, que não resistiu. O grande momento fez-se esperar e corria já o boato de estar Dona Amélia gravemente doente. (ao lado, imagem do casal real)
Foi uma época de grande nervosismo. D. Carlos, o pai, tinha ascendido ao trono um mês antes e lidava como podia com as críticas internas e a temida escalada do conflito com Inglaterra, que redundaria no humilhante Ultimato.
Manuel II viria ao mundo numa madrugada chuvosa e triste (na imagem, o quarto onde nasceu), no mesmo dia em que o seu tio-bisavô, D. Pedro II, foi deposto do trono do Brasil e um grande incêndio destruiu parte do Chiado, deixando Lisboa de credo na boca.
Tinha sido igualmente a 15 de novembro (1853) que a sua bisavó, D. Maria II, se tinha finado.
O nascimento do infante – ainda assim celebrado com três dias de gala e iluminações públicas - pouco mais foi que nota de rodapé nos jornais de época, ocupados com temas mais quentes.
Mas, havia um mês que tudo estava preparado para o receber.
Estranhamente, a rainha mandara vir José Marcelino Pereira Ramos, o médico de Borba que a havia acompanhado um ano antes no triste nascimento da infanta D. Maria Ana. A responsabilidade do parto estava confiada às hábeis mãos de Alice Costa, a parteira, hospedada no palácio de Belém, à espera de intervir.
Foi igualmente Alice Costa a incumbida de escolher a ama de leite para o recém-nascido. Tarefa complexa e melindrosa, tanto mais que no nascimento do príncipe D. Luís Filipe – filho mais velho de D. Carlos e de Dona Amélia - a ama escolhida não teve leite suficiente, o que terá contribuído para o afastamento da anterior parteira.
As fontes divergem quanto à forma como Maria dos Anjos chegou ao conhecimento da Casa Real, embora as versões não se excluam, quer a informação tenha sido obtida junto do porteiro da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou as referências decisivas sobre a jovem partissem do Marquês de Soveral***, conterrâneo da ama.
Certo é que, caso a primeira alternativa não fosse um sucesso, havia outra ama de reserva, na Caparica, na outra margem do Tejo, já escolhida entre raparigas com os requisitos necessários.
Desde meados do século XVIII se havia abandonado a original tradição de ser um seio nobre a aleitar os filhos dos reis. A escolha recaia agora sobre uma jovem do povo. Tinha de ser sadia e virtuosa, mas também, curiosamente, bonita e casada.
Para poder amamentar, era obviamente imprescindível que recentemente tivesse tido uma criança, mesmo que esta não tivesse sobrevivido.
Não consegui apurar se foi este o caso, ou se D. Manuel teve de dividir o leite desta “mãe” emprestada com algum irmão colaço, mas a ama, conhecida na sua terra como Marquinhas Rainha, permaneceu no Paço durante ano e meio, sendo muito positivas todas as apreciações sobre o seu desempenho.
Regressou a S. João da Pesqueira – mais possivelmente a Valongo dos Azeites, de onde seria natural – onde viveu com o marido, António Bernardo Serôdio, de quem teve pelo menos mais uma criança, Carmen, nascida em 1902. Por essa altura, Maria dos Anjos Esteves ainda recebia da Administração da Casa Real uma quantia mensal, como agradecimento pelos serviços prestados.
Quanto a D. Manuel II, embora partilhasse o nome com O Venturoso, cedo quiseram encontrar-lhe semelhanças com outro antecessor: D. Pedro V.
Ambos ascenderam ao trono muito jovens, ambos eram dados à introspeção e conhecidos pela inteligência e retidão de carácter. Tristemente, os dois morreram cedo e sem descendentes.
À margem
Era muito comum as famílias abastadas recorrerem a amas de leite para alimentar os seus bebés e, posteriormente, a amas secas, percetoras e/ou aias (no caso das famílias reais) com a função de cuidar e educar as crianças.
Estas cresciam assim relativamente afastadas de seus pais, estabelecendo laços mais profundos com estas mulheres, do que com as suas mães, que ficavam libertas para total dedicação às exigentes obrigações sociais das classes dominantes.
É longa a lista de amas reais, que começou em Dona Ausenda e Dona Mayor, amas do nosso rei-fundador, D. Afonso Henriques, e, como já vimos, terminou em Maria dos Anjos Esteves.
Mas, no extremo oposto da sociedade, as amas também tinham o seu papel, na difícil sobrevivência das crianças expostas, abandonadas na roda. O Estado, as câmaras municipais ou a Santa Casa da Misericórdia (em Lisboa), pagavam-lhes para receberem estes bebés em sua casa, frequentemente em situação de extrema precariedade. Deviam alimentá-los até poderem ser institucionalizados, mas era tristemente frequente que morressem antes, por doença ou negligência.
Ainda assim, as amas salvaram muitas vidas, embora tivessem ficado especialmente célebres duas amas assassinas, antípodas sociais uma da outra: Mary Ann Brough, que aleitou o príncipe Edward, filho da rainha Vitória, e depois assassinou os seus seis filhos e a última mulher condenada à morte e executada em Portugal, Luísa de Jesus, ama da roda em Coimbra, que terá morto pelo menos 34 crianças.
Mas isso é outra história...
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* D Manuel II passou à história com vários cognomes, sendo O Desventurado apenas um deles. O Patriota, o Bibliófilo, o Estudioso e, bem assim, o Rei-Saudade foram outros dos epítetos atribuídos ao último rei de Portugal
** D Manuel I era apenas primo e cunhado do rei D. João II, que o escolheu como sucessor depois da morte do seu próprio filho e herdeiro do trono, Afonso. Terá sido o único reinar sem ser parente em primeiro grau ou descendente do rei. D. Manuel II, também apelidado de “O patriota”, só subiu ao trono porque o pai, D. Carlos, e o irmão mais velho, o príncipe Luís Filipe, foram assassinados em 1908.
***Luís Maria Augusto Pinto de Soveral, influente diplomata.
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Já aqui antes falei de amas.
E sobre os enjeitados da roda e o seu triste destino
Também já falei de D. Manuel II, e tanto, que aqui não tenho espaço para dizer, basta pesquisar no blog.
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
O Occidente – Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro
12º ano; volume XII; nº393 – 21 nov. 1889
Illustração Portugueza
Nº114 – 27 abr. 1908
Nº115 – 4 mai. 1908
Nº116– 11 mai. 1908
Nº117 – 18 mai. 1908
Nº118 – 25 mai. 1908
O Tiro Civil
Ano 8º; nº244 – 1 out. 1902
Biblioteca Nacional em linha
18º ano; nº5969 – 16 nov 1889
Registos paroquiais portugueses para genealogia
Genealogia sem segredos
As Amas de Leite e a História da Família - Genealogia sem segredos (weebly.com)
Texto de Joana Medeiros Couto e Francisco Queiroz
Monarquis Portuguesa
Organização da Casa Real: Amas Reais - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)
Maria dos Anjos, ama do Rei D.Manuel II - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)
Município de São João da Pesqueira
Mulheres condenadas à morte em Portugal: de 1693 à abolição da pena última, de Maria Antónia Lopes; Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt
Manuel II de Portugal – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)
Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000332
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000344