O dia em que as obras-primas portuguesas foram por água abaixo
O naufrágio do Saint André, que transportava a arte portuguesa exposta em Paris, foi o culminar de uma participação nacional envolta em casos e polémicas.
Dezenas de obras de arte – as melhores e mais ilustrativas do génio de Portugal na viragem para o século XX - mas também documentos insubstituíveis, desapareceram para sempre no dia 24 de janeiro de 1901, numa catástrofe que, curiosamente, pouca ressonância teve nos jornais da época, ocupados que estavam com a morte da Rainha Vitória. Tudo se deveu ao estranho naufrágio do vapor Saint André, um colossal desastre cultural chorado até hoje, mas que acabou por ser encarado como mais uma das polémicas de maior ou menor dimensão que rodearam a participação de Portugal na grande Exposição Universal de Paris, em 1900.
Efetivamente, devido a adversas condições climatéricas e de mar ou à muito apontada pouca solidez, o navio naufragou e, com ele, todo o precioso carregamento, pois havia sido fretado pelo governo português para trazer de França parte das obras-primas que haviam estado patentes no certame.
As dificuldades de navegabilidade acompanharam toda a viagem, desde o porto Le Havre, mas foi já junto à costa portuguesa que, enfrentando maiores perigos, o Saint-André foi abandonado pela tripulação.
De Lisboa, para tentar o resgate, ainda foi enviado o arrastão Berrio, mas em vão.
Deixado à deriva, o vapor foi arrastado e terá afundado algures a Sul de Portugal, à vista de Sagres.
Parte do casco, um barril de óleo mineral e um remo foi tudo o que foi encontrado. Da preciosa e inigualável carga, nem sinal.
Belíssimos quadros de Malhoa; Columbano; Carlos Reis; Alfredo Keil; Alberto Pinto; Sousa Pinto; Veloso Salgado; Carneiro Júnior e muitos outros, entre os quais o próprio rei D. Carlos.
Esculturas, cerâmica e azulejaria de grande qualidade e beleza, nomeadamente da Real Fábrica Vista Alegre, Fábrica das Devesas (Vila Nova de Gaia); Cerâmica do Carvalhinho (Porto), Faianças das Caldas da Rainha, Fábrica de Louça de Avelino António Soares Belo, e também azulejos antigos pertencentes a coleções particulares.
No conjunto, estas preciosidades integravam a orgulhosa representação portuguesa e algumas chegaram mesmo a ser distinguidas pelo júri parisiense, vendo o seu valor artístico reconhecido com a atribuição de medalhas.
Só se salvaram as poucas que seguiram para Portugal por outras vias – comboio e mais três embarcações - ou se desviaram da sua rota destrutiva - como o quadro “As padeiras”, de José Malhoa - porque rumaram para outras exposições, na Rússia e na Alemanha.
Mas, se no campo da arte a perda foi monumental, o que dizer quando se sabe que debaixo de água ficou também mobiliário e toda a documentação pessoal de Eça de Queiroz?
Pois que, após a morte do escritor, em agosto de 1900, a viúva decidiu aproveitar a “boleia” para trazer para o nosso País aqueles bens que haviam permanecido na casa onde Eça passou os seus últimos dias, em Neuilly-sur-Seine, perto de Paris.
De Eça perdeu-se também um pequeno mas expressivo retrato que dele traçou Columbano Bordallo Pinheiro.
Este acontecimento, sobre o qual alguns se apressaram a culpar os comissários portugueses na exposição, por alegadamente terem atirado as obras-primas nacionais para o "primeiro xaveco que lhes apareceu", sem cuidado ou atenção, foi o culminar de um processo deveras atribulado e polémico, que começou com a escolha da equipa, mais por questões políticas do que por capacidades ou experiência demonstradas, passando pela “quantia ridiculíssima” atribuída para a representação e pela seleção da traça arquitetónica dos pavilhões, respetiva localização – numa zona com pouco ou nenhum destaque - e as obras neles a figurar.
Uma lista interminável de controvérsias que, lamentavelmente, se repetem de cada vez que o nosso País se faz representar, seja em exposições, mundiais de futebol ou Jogos Olímpicos Nada de novo, portanto.
Mas, e não será isto comum a todas as nações?
À margem
Foi na Exposição Universal de 1900 que os pavilhões de Portugal foram, pela primeira vez, desenhados por um arquiteto português. Provavelmente, enquanto o foram por estrangeiros não houve tanta discussão sobre a escolha do modelo.
Ao concurso público – com um minúsculo prazo de 25 dias – concorreram numerosos arquitetos e outras tantas visões. O principal a reter é que foi nesta participação também que se fez uma rutura com as referências do estilo manuelino que haviam norteado os pavilhões lusitanos até aqui.
Tratava-se de conceber o pavilhão das colónias portuguesas e o pavilhão das matas, caça e pesca. O vencedor foi o arquiteto Ventura Terra, mas não faltaram logo imensas vozes a acusar a sua proposta de ser pouco portuguesa, chovendo críticas. Houve até quem comparasse o pavilhão das matas, caça e pescas a um “ferro de engomar” e Rafael Bordallo Pinheiro satirizou, apresentando o pavilhão das colónias como se de um túmulo de família se tratasse. Isto, em oposição à ideia apresentada por Raul Lino, autor de um traço que, embora tenha ficado em terceiro lugar, agradou a muitos por conter em si diversos elementos da “casa típica portuguesa”, numa “miscelânea” mais identificável com Portugal.
No global, embora o inspetor geral da participação portuguesa fosse Ressano Garcia, a maior parte dos detratores apontou o dedo ao Comissário Cultural, o visconde de Faria (Augusto de Faria), curiosamente, o mesmo homem que Eça de Queiroz foi substituir no consulado de Portugal em Paris e de quem ficou com péssima impressão, em especial devido à sua "tremenda" mulher.
O mesmo indivíduo que era depois (injustamente?) apontado como causador de todos os males, nomeadamente do naufrágio que fez desaparecer para sempre os documentos do escritor e que Rafael Bordallo Pinheiro ridicularizou, criando à sua imagem um boneco oscilante, um paliteiro com ar de pavão inchado
Mas isso é outra história...
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Fontes
Portugal na Exposição de Paris, de José de Figueiredo; Empresa da História de Portugal, Lisboa 1901 – University of Toronto University. Disponível em https://ia802907.us.archive.org/31/items/portugalnaexposi00figuuoft/portugalnaexposi00figuuoft.pdf
Os pavilhões de Portugal nas exposições universais, de Isabel Maria de Moura Anjinho Marques dos Carvalhos; tese de Mestrado em História da Arte - Seminário: “Arte e celebração: o efémero e o durável”; Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – 2006. Disponível em https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:gBbxWgh2XswJ:https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31086/1/Os%2520pavilh%25C3%25B5es%2520de%2520Portugal%2520e%2520as%2520exposi%25C3%25A7%25C3%25B5es%2520universais.pdf+&cd=1&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=pt
O azulejo enquanto objeto museológico, de Patrícia Nóbrega Pereira, Trabalho de Projecto de Mestrado em Museologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa – Mar. 2013. Disponível em https://run.unl.pt › bitstream › az_obj_museologico
Eça de Queiroz, uma biografia, de Maria Filomena Mónica, Livros Quetzal 2001 - tradução em inglês Alyson Aiken; Tamesis - Boydell & Brewer Lda. - 2005. Parcialmente disponível em: https://books.google.pt/books?id=sHOWt1vNwmoC&pg=PA412&dq=e%C3%A7a+de+queiroz+uma+biografia+maria+filomena+m%C3%B3nica&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwi0zvWS5OfkAhWWD2MBHWpQCvoQ6AEIOjAD#v=onepage&q=e%C3%A7a%20de%20queiroz%20uma%20biografia%20maria%20filomena%20m%C3%B3nica&f=false
Le Portugal à la Exposition, nº1 - 23 mar. 1900. Disponível em:
https://www.oasrs.org/media/uploads/ExpUniv1900.pdf
Exposições Universais – Paris 1900, de António Guerreiro; mai. 1995, Lisboa; edição Expo'98. Disponível em: cvc.instituto-camoes.pt › biblioteca-digital-camoes › arquitectura-1 › file
Arquiteturas expositivas e identidade nacional – Os pavilhões de Portugal em Exposições internacionais entre a primeira república e o Estado Novo, de Teresa João Baptista Neto – dissertação para a obtenção do grau de mestre em Arquitetura; Instituto Superior Técnico – Lisboa - mai. 2016. Disponível em https://fenix.tecnico.ulisboa.pt › cursos › dissertacao
https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:9bT5u2SlVegJ:https://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2010/03/cem-anos.html+&cd=11&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=pt
http://provocando-umateima.blogspot.com/2013/01/paris-1900-lexposition-universelle.html
Revisto em 04 mar 2021 com base no texto Notícias sobre Portugal na exposição Universal de Paris, 1900, de José de Quintanilha Mantas, in Portugal 1900; catálogo de exposição - Museu Calouste Gulbenkian – Lisboa - 29 jun -10 set 2000; Fundação Calouste Gulbenkian, bem como relato do autor.
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Imagens
Hemeroteca Digital de Lisboa
hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
O Occidente – Revista Illustrada de Portugal e do Extrangeiro
22º ano; XXII Volume; nº 763 – 30 nov. 1899
A Paródia
2º ano; nº37 – 13 fev. 1901
http://lisboa-e-o-tejo.blogspot.com/2018/05/arte-portuguesa-na-exposicao-universal.html
https://geneall.net/pt/nome/36119/augusto-de-faria-1-visconde-de-faria/
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