O homem que inventou a escandalosa Sociedade do Delírio
Entre o infame e o genial. Assim foi a existência do último Marquês de Nisa, o mais famoso estúrdio do seu tempo. Mulherengo incorrigível, pandego autor das mais faladas proezas marialvas, mas também empresário com visão, respeitado intelectual e político, especialista em propor leis que prejudicavam sobretudo os da sua classe e condição.
D. Domingos* foi o maior boémio e estroina do seu tempo, “derretendo” veloz e eficazmente a colossal fortuna que herdara. Este descendente de Vasco da Gama, que ficou conhecido por fundar a Sociedade do Delírio, pelas partidas alucinantes e escandalosas e pelo rapto de belas mulheres, foi ainda um político de mérito, um intelectual respeitado pelos maiores literatos de Portugal e um visionário em termos agrícolas e empresariais.
O 9º e último marquês de Nisa nasceu em 17 de janeiro de 1817, fruto de uma longa linhagem de diplomatas e políticos de gabarito. Impecável de trato e elegância, fazia jus à sua ilustre família, cultivando a educação e o saber estar, mas era muito diferente dos seus antepassados.
Parte da sua existência foi dedicada a engendrar e executar atos de puro divertimento, tão inesperados quanto dispendiosos e aparatosos, com o que chocava a pacata sociedade lisboeta e aturdia os amigos, entre os quais se contavam Bulhão Pato e Alexandre Herculano.
Movimentava-se no meio literário, como no artístico, com enorme à-vontade e ecletismo. Tanto vestia a pele de diletante assíduo do “S. Carlos” (na imagem), aproveitando para se envolver com cantoras e bailarinas; como se encantava pelas “severas” que encontrava nas baiucas onde então se cantava o fado.
Ficaram lendárias as festas faraónicas – à semelhança do Conde do Farrobo, de que era próximo – que promovia amiúde, sempre com detalhes picantes. Como aquela, em honra da passagem por Lisboa do compositor Franz Liszt e na qual belas mulheres participaram com os vestidos levantados, presos no pescoço. Ficaram conhecidas como as maçarocas do Marquês de Nisa e durante semanas foram o maior prato da má-língua da Capital.
Para promover este tipo de atividades, criou, com um seleto grupo de estúrdios como ele, a famosa “Sociedade do Delírio”, que servia para tudo, desde que os planos envolvessem belas mulheres, bom vinho e banquete a condizer. Não importava se tal conjugação de elementos se dava nas tabernas e retiros mais sórdidos, ou nos exclusivos salões das diversas casas de D. Domingos.
Onde quer que fixasse residência, aliás, rodeava-se de luxo digno de um Medici e era servido por um verdadeiro batalhão de criados.
Exemplos dessa opulência eram o Paço de Xabregas (na imagem) e o Palácio do Chiado – onde viveu.
Era um amante do belo, sobretudo nas mulheres.
Quanto mais estas resistiam aos seus avanços, mais a sua vontade crescia e, como um rapaz pequeno que rouba o que não consegue comprar, raptava as mais renitentes, como a conhecida atriz de teatro Emília das Neves (ao lado), que nem assim terá cedido aos galanteios do Marquês.
A maioria, no entanto, parecia achá-lo encantador, porque colecionava conquistas e romances, dos quais se aborrecia em pouco tempo, como é fácil de supor.
A paixão que nutria pelo sexo feminino só podia ser comparável à que o ligava ao jogo, fosse carteado, xadrez ou bilhar.
Chegava a sair do tabelião, onde vendera uma das suas muitas propriedades, diretamente para a mesa da sorte e, frequentemente, do azar, perdendo numa noite enormes fortunas.
Contam-se dele “façanhas” tão lendárias quanto discutíveis, como uma partida de cartas que demorou 60 horas; a sedução – hoje chamar-se-ia assédio - das mais belas, desejadas e castas mulheres; partidas sempre dispendiosas e espetaculares, em Portugal e um pouco por toda a Europa, onde a sua fama o precedia.
Atirador com uma precisão inigualável, divertia-se exibindo essa invulgar perícia com armas de fogo.
Esgrimista de renome, envolvia-se em desafios e duelos que vencia sem dificuldade, até ao dia em que enfrentou um bailarino profissional, marido ultrajado, que lhe inutilizou um dos olhos.
Míticos também os atentados que perpetrou contra a sua própria fortuna: já em declínio financeiro, chegou a pagar o mais opulento dos festins com toda a luxuosa e requintada baixela onde aquele havia sido servido.
Ora, uma vida assim, no fio da navalha, por muito bom que se fosse a manejar a dita, tende sempre para o abismo.
Mas, D. Domingos era um homem de muitos atributos e nunca perdia a fleuma. Em tempos de grandes dificuldades de liquidez, quando já não conseguia enfrentar os credores, refugiava-se no estrangeiro. Os seus dotes como tenor e tocador de rabeca, que antes tinham encantado os saraus da moda, bastaram para o sustentar, atuando em vários teatros, como membro de uma companhia itinerante.
Os conhecimentos de leis e de vários idiomas também lhe valeram o ganha-pão noutros momentos.
Em 1873, já na ruína, o último Marquês de Nisa, o maior taful do seu tempo, foi vencido pela tuberculose da qual ainda tentou fugir, rumando aos Pirenéus, em busca de melhores ares que lhe garantissem a cura.
À Margem
Extravagante e perdulário incorrigível, mas também extraordinariamente inteligente e respeitado por isso. Era ainda um visionário que apostava em técnicas agrícolas inovadoras nas suas vastas propriedades** e também no cruzamento de raças equídeas, para aperfeiçoar determinadas características.
Fez parte da comissão responsável por nova legislação sobre o comércio de cereais, que resultou em progressos agrários importantes, na metrópole e nas colónias.
Conseguiu a concessão de todas as ostreiras da costa portuguesa, pois pretendia apostar na sua exploração, e quis instalar em Portugal uma companhia semelhante à que gere o Casino de Monte Carlo, provavelmente projetando resolver assim todos os seus problemas financeiros e também os do País, como aconteceu no Mónaco.
Como membro da Câmara dos Pares do Reino, foi declarado responsável técnico pela remodelação da sala de sessões do Palácio de São Bento (na imagem), apresentando um espaço verdadeiramente sumptuoso, embora com problemas de acústica e gélido, pois o dinheiro disponível não chegou para os aquecedores.
Ali, apresentou propostas importantes e curiosas, isto porque tendiam a prejudicá-lo: defendeu o fim das touradas, que adorava; apresentou projetos de lei para abolição dos morgados, que perpetuavam a terra nas mãos de um punhado de famílias, como a sua, e preconizou o fim da hereditariedade do pariato, que precisamente lhe dava o privilégio de ter assento na Câmara dos Pares.
Extremamente bem relacionado, terá sido o Marquês de Nisa que apresentou o rei viúvo, D. Fernando II àquela que viria a ser a sua segunda mulher, a atriz e cantora Elise Hensler, por todos conhecida como Condessa d’Edla.
Mas isso é outra história…
........................................................................................
*D. Domingos Vasco Xavier Pio Teles da Gama Castro e Noronha Ataíde Silveira e Sousa (1817-1873), 9.º e último Marquês de Nisa e 13.º Conde da Vidigueira e 9.º Conde de Unhão.
Por curioso que pareça, pela vida de devassa que levada, D. Domingos era casado. Casou aos 18 anos, em Paris, com Maria Constança de Saldanha da Gama. Tiveram pelo menos sete filhos.
**Entre estas contava-se a vastíssima Herdade do Paul; herdades dos Chavões (Santarém) e Foz.
...........................................................................
Já aqui falei de uma neta deste casal e das peripécias que enfrentou com o advento da República.
A condessa de Cascais e a jornalista inglesa encontraram-se na cadeia - O sal da história (sapo.pt)
....................................................................................
Nota: as imagens não identificadas no texto são meramente representativas de zonas de Lisboa onde o Marquês de Nisa se movimentava e da época em que ali viveu - Chiado; praça D. Pedro IV (Rossio) e Jardim Público.
´..................................................................................
Fontes
O último Marquês de Niza – A sociedade aristocrática, política, artística, democrática e esturdia de ontem, de Eduardo de Noronha; Magalhães & Moniz Editores, Porto. A sociedade do delírio – continuação do romance
O Conde de Farrobo e a sua época, de Eduardo de Noronha; J. R. Torres, Lisboa – 1921. Disponível em https://org/details/sociedadededelir00noro
A Câmara dos Pares na Época das Grandes Reformas Políticas (1870-1895), tese de doutoramento em História, de Alberto José Grilo Belo; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; fev. 2012. Disponível em RUN: A Câmara dos Pares na época das grandes reformas políticas (1870-1895) (unl.pt)
Sociedade do delírio: Boémia e literatura portuguesa no século XIX, de Ulisses Rafael; em Oficina nº 341 – Centro de Estudos Sociais de Universidade de Coimbra; mar. 2010. Disponível em:
Sociedade do delírio: Boemia e literatura portuguesa no século XIX (uc.pt)
COMUNICAR Parlamento
Texto de Cátia Mourão e Teresa Fonseca Debates Parlamentares
Assembleia da República (parlamento.pt)
Câmara dos Pares do Reino / Monarquia Constitucional
Assembleia da República (parlamento.pt)
Casino de Monte-Carlo: O Guia Completo
Casino de Monte-Carlo: O Guia Completo - ICONIC RIVIERA
Biblioteca Nacional em Linha
Diário Illustrado 2º ano; nº378 – 16 ago 1973
Emília das Neves – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Marquês de Nisa – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Imagens
Marquês de Nisa, gravuras publicadas na obra: O último Marquês de Niza – A sociedade aristocrática, política, artística, democrática e esturdia de ontem, de Eduardo de Noronha; Magalhães & Moniz Editores, Porto.
Emília das Neves, por Joaquim Pedro de Sousa (1818-1878) – Publicado in Revista Contemporânea de Portugal e Brazil, tomo 2, 1860., domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1940252
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)
André Salgado
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SAG/000006
Eduardo Portugal
Reprodução de uma litografia de Legrand
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001680
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/002100
Estúdio Mário Novais
Reprodução de desenho de Casanova sobre gravura de Severini PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/MNV/001568
Casa Fotográfica Garcia Nunes
Reprodução Manuel Luís sobre gravura de Severini
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NUN/002236