O homem que leu os pensamentos do rei…e de quem mais lhe pagou para isso
As “experiências prodigiosas” de Stuart Cumberland fizeram um percurso de sucesso e admiração por toda a Europa. O inglês desdobrou-se em espetáculos entre nós, mostrando-se à melhor sociedade lusitana, de quem traçou um curioso retrato. Com El-rei, passou duas horas e demonstrou os seus dotes de leitor de pensamentos a toda a família real.
Cumberland foi um caso sério de notoriedade em finais do século XIX. Em todos os países por onde passou, sempre com casa cheia e uma compreensível desconfiança por parte da Igreja, fazia pagar-se bem e relacionava-se ainda melhor, juntando este “dom” muito conveniente à alegada capacidade de decifrar pensamentos com base nos movimentos musculares sentidos nas mãos dos seus “clientes”, que segurava durante as exibições.
Em Portugal, atuou em Lisboa – Real Teatro de São Carlos – no Porto e em Coimbra. Fez também diversas apresentações privadas, para grupos muito seletos de gente endinheirada em busca de emoções fortes. Nesse âmbito, foi a estrela de um concorrido encontro no Palácio Fronteira, em Benfica – cujos belos jardins lhe fizeram lembrar uma espécie de reino encantado das mil e uma noites – e, a pedido de D. Luís, deslocou-se ao Palácio Nacional da Ajuda, onde foi recebido de braços abertos pelo afável monarca.
A simpatia do rei, assim como a sua erudição e sentido de humor, impressionaram Stuart Cumberland, a quem a frieza e vontade férrea da rainha Maria Pia provocaram alguma apreensão.
Nesse dia 15 de fevereiro de 1887, o curioso inglês fez várias das suas provas de interpretação de pensamentos. De olhos vendados, conseguiu encontrar um retrato da Infanta D. Antónia, guardado em outra sala e no qual o sobrinho, D. Afonso, se concentrou. Ganhou balanço e logrou adivinhar um nome (Maria) e uma data (1855), nos quais, sem qualquer pista, o rei pensou com afinco.
Mesmo depois de alguma hesitação devido à muda oposição da rainha, descobriu, dentro de uma gaveta fechada e num maço com dezenas de outras, uma fotografia do príncipe Amadeus, irmão de Maria Pia, na qual a soberana focou os seus pensamentos.
D. Luís ainda pediu a Cumberland que tentasse desvendar o que escondia a mente do presidente do Conselho de Ministros, José Luciano de Castro que, entretanto, havia chegado ao local e cujos pensamentos os seus opositores políticos afirmavam ser insondáveis… mas o político fez bem jus à sua alcunha de “velha raposa” e, embora não o tenha declaradamente recusado, conseguiu escapar à leitura, com a qual o mentalista inglês percebeu imediatamente que aquele político não se sentia minimamente à vontade.
A permanência em Portugal permitiu ao perspicaz Cumberland traçar um perfil do nosso povo, que achou muito diferente dos vizinhos espanhóis, na sua opinião, bem mais calmos, devotos, conservadores e bem-educados do que nós.
A seu ver, os portugueses são mais virados para o negócio e dignos de confiança. Mas, enquanto os espanhóis falam muito, frequentemente não sentindo o que dizem, nós temos mais sentimento, mas raramente nos damos ao trabalho de o expressar.
Como “objetos” das suas experiências, os nacionais são amiúde demasiadamente céticos para serem justos e tão opinativos que dificilmente são convencidos. As portuguesas não têm a mesma graça e beleza que as suas “hermanas”, mas são, geralmente, mais inteligentes.
Achou intrigante o facto de em Portugal as pessoas se orgulharem dos seus extensos nomes, somando ao de batismo, os do pai e da mãe e ainda os dos cônjuges, algo muito difícil e traiçoeiro, particularmente para um estrangeiro que tem de provar que a tudo está atento.
Ainda que tenha privado com gente da nossa melhor sociedade – menos interessante que a madrilena - não lhe escapou um certo “alpinismo” social então fulgurante, e, em paralelo, a decadência das famílias mais antigas, face à legislação penalizadora das suas propriedades e fortunas.
Por toda a Europa, especialmente no Sul, Cumberland encontrou por parte da Igreja Católica uma atitude de desconfiança quanto à sua atividade, que, aos olhos dos padres que conheceu, era mais enquadrável nas artes negras de Belzebu do que nos desígnios de Deus. O encontro mais marcante, no entanto, foi com um sacerdote português, que o alertou para o mau fim que provavelmente o esperava, caso não emendasse o seu caminho em direção ao Senhor.
A conversa teve tal impacto no inglês que, nessa noite, o seu sono foi agitadíssimo e assolado por um aterrador pesadelo em que o Diabo recorria aos seus serviços de adivinhação. Em vez de colocar a sua mão peluda entre os delicados dedos do mentalista, Satanás colocava a pegajosa e nojenta cauda, pretendendo que o horrorizado Cumberland lesse nela os seus mais recônditos pensamentos.
À margem
Stuart Cumberland era o nome artístico de Charles Garner. Tinha apenas 30 anos quando visitou Portugal e já era um verdadeiro fenómeno de popularidade, surpreendendo todas as numerosas plateias, desejosas de lhe entregar os seus pensamentos para ler. Eça de Queiroz descreveu-o como “um gentleman gordo, de cabelo cor de milho, corado, próspero, mostrando no porte e nos modos o tranquilo bebedor de cerveja e o homem correto de negócios” que era. Revelava-se, ainda, culto, penetrante e bem informado sobre os temas da atualidade portuguesa.
Uma das mais entusiasmantes experiências que fazia em público era pedir a alguém para imaginar um crime. Depois, com os olhos vendados, apenas pelo toque e através dos involuntários movimentos musculares da pessoa “lida”, conseguia identificar a vítima e o criminoso, bem como fazia a reconstituição da cena fantasiada.
Curiosamente, nunca se arrogou possuir quaisquer poderes ou capacidades extrassensoriais, considerando charlatões os que acreditavam e defendiam fenómenos como a telepatia ou a comunicação com o além.
O que diria Cumberland de outro grande prodígio que passou à história com o nome de Madame Broillard e a quem a mesma alta sociedade, não muito tempo depois, passou a recorrer de forma sistemática e crente?
Ambos tinham nas mãos da “clientela” o seu grande trunfo.
Mas isso é outra história...
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Diário Illustrado
16º ano; nº4963 – 16 fev 1887
A Thought-reader’s Thoughts – Being the impressions and confessions of Stuart Cumberland; Sampsom Low, Marston, Searle & Rivington; Londres – 1888. Disponível aqui:
Eça de Queiroz “In Memoriam”, organizado por Eloy do Amaral e M. Cardoso Marta; parceria António Maria Pereira – livraria editora; Lisboa – 1922. Disponível aqui:
22 Jul 1884 - MUSCLE-READING BY MR. STUART CUMBERLAND. - Trove (nla.gov.au)
Stuart Cumberland - Magicpedia (geniimagazine.com)
Daily British Columbian - UBC Library Open Collections
Imagens
Stuart Cumberland
Imagem extraída da pg 10 of What I think of South Africa; its people and its politics, de CUMBERLAND, Stuart C.. Original detido pela British Library. Copied from Flickr
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=31493858
CUMBERLAND Stuart (Charles GARNER 1857 1922) Stuart Cumberla (swanngalleries.com)
File:Cumberland.jpg - Magicpedia (geniimagazine.com)
Cumberland, Stuart. The Chevalier Stuart Cumberland. sold at auction on 25th June | Bidsquare
Muscle_reading_example.png (788×1296) (wikimedia.org)
George Miller Beard
Luís I
Augusto Bobone
File:D. Luís I fotografado por Augusto Bobone em 1885.png - Wikimedia Commons