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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O homem que roubou e incendiou a Patriarcal

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Muita estupidez, ou muita arrogância? O que faz um homem lançar fogo, não uma, não duas, mas pelo menos três vezes, em espaços a que só ele tinha acesso e pensar que podia sair impune? E como é que, mesmo assim, só vários anos e sucessivos incêndios depois se descobre um crime tão grosseiro…e tão proveitoso?

 

Esta é a história de Alexandre Franco Vicente, armador da Santa Igreja Patriarcal, profissão exclusiva e de grande responsabilidade, porquanto estavam à sua guarda bens de enorme valor: as estruturas e os ricos panejamentos, alguns ataviados e bordados a ouro e prata, com que deveria decorar os templos e os espaços públicos durante as procissões mais importantes e outras cerimónias religiosas de superior solenidade.

Tal ofício não devia ser suficiente para a sua ambição, pois durante anos conseguiu enganar tudo e todos, desviando os valiosos materiais – veludos, sedas, damascos e franjas de ouro que substituiu por outras falsas - vendendo-os a retalho por meia Lisboa. O caso revelou, aliás, um mercado paralelo com base nestes preciosos ornamentos, já que o armador da Patriarcal os traficou com cidadãos comuns, mas também com ourives estabelecidos e com o próprio meirinho da Mesa da Consciência, que aqui surge, se não como corrupto, pelo menos como mutissímo distraído.

E, Alexandre Franco Vicente mostrou não ser sério igualmente  nas suas relações familiares e pessoais. Ficou provado que, quando finalmente pressentiu ter sido decoberto e fugiu para o Algarve, enganou a mulher que  o acompanhou, mentindo-lhe que com ela havia casado por procuração. No processo que enfrentou na justiça, ficou igualmente estabelecido que o seu pai teve que avançar com dinheiro para ocultar mais trapaças do filho no aluguer de ornamentos.

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O pior de tudo foi o que o armador da Patriarcal fez para esconder os seus embustes.

Por três vezes, ateou fogo à sede da Patriarcal. Sempre à beira de comemorações religiosas para as quais seriam necessários os panos e armações que havia roubado.

O primeiro incêndio, na véspera do Dia do Espíríto Santo de 1769, foi o mais espetacular, pois destruiu todo o edifício que havia sido erigido já depois do terramoto de 1755, no lugar da Cotovia, ao Príncipe Real, ainda hoje conhecido como calçada da Patriarcal Queimada.

O segundo incêndio, dois anos depois, na véspera do Dia de Todos os Santos, pôs em risco todo o Mosteiro de São Bento, para onde aquela instituição se havia mudado, e a Torre do Tombo, que também ocupava uma ala do edifício. Por fim, terá pegado fogo à nova sede da Patriarcal, no Convento das Comendadeiras de Santos Novos, já em 1772.

Desconhece-se ainda se os incêndios havidos na Patriarcal antes de 1769 também teriam sido de sua autoria ou se o facto de ser bizarramente “natural” a Patriarcal virar pasto de chamas terá desviado a atenção destes atos, porque só em 1773 é que Alexandre Vicente foi descoberto, por suspeita do prior da mesma igreja, confrontado com a ausência de adereços que ali deveriam estar e que, misteriosamente, haviam desaparecido.

Foi esta constatação, e a impossibilidade de a esclarecer por fuga do suspeito, que levou – diga-se, muito convenientemente -  Silvestre da Silva Barbosa, o já mencionado meirinho da Mesa da Consciência, a denunciar as vendas que anteriormente e de forma reiterada, havia aceite de Alexandre Vicente.

É preciso lembrar que estavamos numa Lisboa em luta para renascer dos escombros deixados pelo terramoto de 1755, que matou milhares de pessoas e destruiu a maior parte dos edifícios com o respetivo recheio, sendo especialmente escabroso e chocante que alguém, ainda mais pessoa de confiança, viesse destruir o que se tentava reconstruir e tirar partido do que já se havia conseguido recuperar com enorme esforço.

A sentença a que condenaram Alexandre Vicente não foi certamente alheia a este contexto.

No dia 28 de janeiro de 1773, terá sido açoitado e arrastado “à cauda de um cavalo”, com baraço e pregão – isto é, com uma corda ao pescoço e alguém apregoando os crimes cometidos – até ao largo da Cotovia, onde outrora se erguia a Patriarcal por si incendiada. Aí foi queimado vivo.

O acordão determinava que o seu corpo deveria ser reduzido a cinzas, “para dele não haver mais memória”, mas, como aqui se prova, esse derradeiro objetivo  não se concretizou.

À margem

tetaro ginasio 3.jpgOs crimes de Alexandre Franco Vicente inspiraram uma peça de teatro que o jornalista e dramaturgo popular Leite Bastos levou à cena no Teatro Gimnásio Lisbonense*. O autor, que até à época tinha visto as encenações das suas obras serem acolhidas com grande entusiasmo, não gostou da reação do público, que brindou o espetáculo com uma estrondosa pateada. Respondeu, no local, em termos extremamente insultuosos para quem assistia e, ao contrário da peça em palco, foi compensado com uma enorme ovação. Leite Bastos não voltaria a escrever teatro, mas insistiria no tema com um folhetim sobre o homem que por três vezes pegou fogo à Patriarcal de Lisboa.

Mas isso é outra história…

 

* Atual Espaço Chiado, na rua Nova da Trindade

 

Fontes

http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4381115

 

Gabinete Histórico que sua Magestade Fifelissima o Senhor Rei D. Miguel I em no dia dos seus felicissimos annos – 26 de outubro de 1831- offerece Fr. Cláudio da Conceição – Tomo XVII – Contém os annos desde 1771 até 1775 – Lisboa, na Impressão Régia.

https://books.google.pt/books?id=mQorAQAAMAAJ&pg=PA45&lpg=PA45&dq=%22lu%C3%ADza+de+jesus%22+senten%C3%A7a&source=bl&ots=U0tJGe8i25&sig=GEdJbHZ3FSTMxqRJbMJaxoVR964&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwiaoYCzmq3YAhUFchQKHc16ApoQ6AEITjAH#v=onepage&q=henrique%20carlos&f=false

 

 

 

Cadernos do Arquivo Municipal. ISSN 2183-3176. 2ª Série Nº 7 (janeiro - junho 2017), p. 113 – 136 - Maria João Pacheco Ferreira*, Das armações e do ofício de armador na cidade de

Lisboa nos séculos XVII e XVIII, CHAM – Centro de História d’Aquém e de d’Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa / Universidade dos Açores, 1069-061 Lisboa, Portugal.

 

Centro de Documentação de Autores Portugueses

http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=7678

https://crimesdebolso.wordpress.com/2016/04/09/francisco-leite-bastos/

https://toponimialisboa.wordpress.com/2016/02/19/a-rua-nova-da-trindade-de-1836/

 

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Eduardo Portugal

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/000036

Alberto Carlos Lima

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/000669

Salvador de Almeida Fernandes

Exposição de documentos e obras de arte relativos à história de Lisboa , Lisboa, 1947 - Catálogo da exposição de documentos e obras de arte relativos à história de Lisboa. Lisboa, 1947. 206. [58] p.

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SAL/000126

 

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