O iminente naufrágio do Vera Cruz com milhares de tropas a bordo
Lá fora ouve-se gritaria. Percebe-se que há muita agitação. A qualquer momento espera-se ordem para abandonar o navio. Receia-se ver o oceano invadir os corredores e os camarotes. Às 4h30 de uma noite sem sono, temeu-se pela vida. A bordo, regressaram do Ultramar três mil militares portugueses.
"Quase quatro anos de tropa, dois de Ultramar, sem incidentes. Será que vou morrer a caminho de casa?". Este era o pensamento que pairava na cabeça de muitos dos cerca de três mil militares que, na madrugada do dia 26 de maio de 1970, tentavam, a bordo do Vera Cruz, passar incólumes o Cabo das Tormentas. Foi quando, pelas 4h30, uma onda sísmica apanhou o paquete que os trazia de regresso a Lisboa, onde as famílias e as suas vidas os esperavam, para um recomeço, após tão longo interregno a "lutar pela pátria", em paragens africanas.
"Percebia-se que o navio vinha a grande velocidade. Ninguém dizia nada, mas estávamos todos acordados, até que se deu aquele incrível sarrabulho. O navio não tinha levantado a proa da água, ouviram-se estrondos. Saímos dos beliches e fomos espreitar. Havia gente vestida e com a bagagem, havia soldados em calções. Estavam todos agitados, sem saber o que fazer ou esperar. Ninguém percebia bem o que se passava, embora todos tivéssemos noção que era grave. Eu estava num grupo de seis do laboratório militar e era o mais velho. Pediram-me que tomasse uma decisão. Não tive dúvidas e fui claro: 'prefiro morrer afogado, a ser espezinhado nos corredores. Quem quiser sair, pode fazê-lo já. Por mim fecho tudo e esperamos todos aqui'. Assim foi. Ninguém dormiu, mas ali ficámos, em silêncio, alertas".
Na manhã seguinte era notório que o perigo maior tinha passado, mas os mais curiosos queriam ver para crer e entender o que se tinha acontecido. Nos porões, a água chegou à cintura dos militares que ali se encontravam. À superfície, havia vidros partidos, estilhados do que haviam sido as vidraças da cabine de comando; muitos ferros amolgados e retorcidos, guinchos e outros apetrechos arrancados pela raiz.
Mas, sentia-se a bonança no ar. Os militares apressaram-se a pôr a secar ao sol tudo o que as águas marinhas tinham encharcado: da roupa de cama, à farda, passando pelas coloridas almofadas e tecidos chineses muito em voga no Moçambique daqueles tempos.
Aos mais perspicazes não escapou um pequeno grande pormenor: o Vera Cruz tinha mudado de rumo e navegava de volta a Lourenço Marques. Soube-se mais tarde que os danos no paquete a isso tinham obrigado.
Houve alguma desilusão, claro, mas de regresso à cidade onde tinham passado os últimos anos, houve oportunidade para gastar os "tostões" moçambicanos que restavam nos bolsos, reaver dívidas que não haviam sido cobradas, pagar umas rodadas aos companheiros de armas e festejar com um belo bitoque na Cervejaria Portugalia.
O reembarque foi dois ou três dias depois, sanadas que estavam as questões de segurança, mas ninguém esperava que novo contratempo os prendesse ao Vera Cruz ainda mais do que o esperado.
Efetivamente, o paquete avistou Lisboa em noite de Marchas Populares, não tendo, por isso, autorização para atracar em Alcântara. Feliz com a chegada, mas saturados de tantos atrasos, os militares resolveram manifestar o seu desagrado lançado borda fora as enxergas em que tinham dormido nas últimas semanas. Como a maré estava a encher, na manhã seguinte o Tejo parecia uma imensa cama, coberta por milhares de colchões que durante muitos dias foram dando à costa, do cais Rocha do Conde de Óbidos, até Cascais.
Escusado será dizer que nenhum eco se fez das atribulações da viagem ou do tremendo risco pelo qual passaram cerca de três mil jovens de regresso do Ultramar. A guerra e o regime já enfrentavam oposição que chegasse no início dessa década de setenta, a ultima do Estado Novo.
À margem
Segundo se sabe hoje, o Vera Cruz, um belo e robusto navio com 186 metros de comprimento, pertencente à Companhia Colonial de Navegação, foi apanhado por uma onda sísmica, causada pela confluência das correntes atlânticas, com as provenientes do Indico e ainda pela proximidade da costa na desembocadura do canal de Moçambique e o movimento das placas tectónicas na região. A vaga gigantesca não deixou o navio levantar a proa e explodiu contra a ponte de comando, a uns 25 metros acima do nível do mar. Os estragos foram muitos, nomeadamente, numerosas janelas, inclusive algumas com vidro de dois centímetros de espessura, os quadros elétricos dos motores e do radar, instrumentos de navegação; danos estruturais, escadas e varandas arrancadas, rebordos exteriores amolgados, camarotes alagados. O perigo da ocorrência destas ondas demolidoras é tal na zona da África do Sul, que havia muito que os ingleses, por exemplo, já tinham traçado rotas mais afastadas da costa, para evitar tamanha concentração de factores de risco, decisão que os portugueses só tomaram depois do incidente que aqui se conta, porque até esse momento falava mais alto a poupança de combustível obtida pela trajetória mais curta e "à boleia" da corrente do canal de Moçambique. Muitos e de variadas nacionalidades terão sido os navios que, ao longo dos séculos, ali se perderam, mas foi especialmente dramático o naufrágio do paquete Waratah, que regressava a Inglaterra depois da sua viagem inaugural por terras da Austrália. Na longínqua noite de 27 de junho de 1909, desapareceu misteriosamente, com 211 passageiros a bordo, precisamente na mesma latitude onde ocorreu a experiência do Vera Cruz.
Mas isso é outra história...
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O testemunho na primeira pessoa é do cabo
Joaquim Fernando Madeira Martins,
o meu querido pai, a quem agradeço a partilha.
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As imagens são meramente ilustrativas do navio e da época, não da viagem relatada.
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Fontes
Relato de Joaquim Fernando Madeira Martins
Texto de Luís Filipe Morazzo, Revista da Marinha 941 dez. 2007-jan 2008 (não encontrei o original no citado nº da revista). Disponível em:
https://fdocumentos.com/document/o-vera-cruz-a-um-passo-do-abismo-por-luis-filipe-in-revista-marinha.html
Imagens
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/chegada-do-navio-vera-cruz/
https://ccm.marinha.pt
http://ww3.aeje.pt/avcultur/Secjeste/Arkidigi/VeraCruz001.htm
imagens fornecidas por:
Postal da época - Col. José Bregieiro
Casimiro Simões Calafate
José Baleiras - Janeiro de 1971
Álvaro Jesus Vinagre
http://passengersinhistory.sa.gov.au/node/938852
https://www.reddit.com/r/UnresolvedMysteries/comments/6dnqmy/the_ss_waratah_vanished_in_1909_with_211_souls_on/