O poeta que saiu do armário nunca foi perdoado
Foi o primeiro à escala global a assumir-se abertamente e sem rodeios. A sua obra, largamente elogiada pelo genial Fernando Pessoa, não mais seria olhada da mesma forma. Há quase cem anos, António Botto chocou a pudica sociedade portuguesa.
António Botto teve, em 1921, o arrojo de, com a sua arte, expor de forma despudorada, descomplexada e clara uma preferência pela estética do amor homossexual. Foi o primeiro no mundo a ter tal ousadia, logo perseguida pela “moral e bons costumes”, no que ficou conhecido como “o maior escândalo erótico-social do século XX"*. De pouco lhe valeu a defesa artística de Fernando Pessoa ou José Régio, porque a sua obra nunca mais seria avaliada de forma isenta. Mas, quem foi este homem que conseguiu escrever “literatura de Sodoma” e, em simultâneo, livros aprovados pelo Cardeal Cerejeira e até aconselhados para o ensino?
Até mesmo para os estudiosos de Botto é difícil perceber onde termina a realidade e começa o mito, porque o escritor criou uma imagem desejada de si próprio, mais favorável ao seu reconhecimento público, que avidamente procurava.
Nasceu no concelho de Abrantes, em 17 de agosto de 1897 e cedo veio com a humilde família viver para Lisboa. O pai era fragateiro e Botto cresceu no ambiente popular e boémio de Alfama, não se lhe conhecendo instrução formal aprofundada.
É pois um autodidata que, em 1921, publica o “escandaloso” livro
de poesia “Canções” (com prefácio de Teixeira de Pascoaes). Com a greve dos jornais que nesse abril vigorava, a obra quase passaria despercebida, não fosse pelo menos um texto violento n’A Capital, em que o jornalista Armando Ferreira chega a defender o uso de “pau de marmeleiro” para “escorraçar” o artista, cuja fotografia (à direita) “nuzinho até aos ombros e com os olhos em alvo” - que acompanhava o livro nos escaparates - provocou tanto melindre como as linhas que escreveu. Curiosamente, no Diário de Lisboa, o insuspeito António Ferro disse não ter visto qualquer escândalo, antes uma “sensibilidade delicada” por parte de um “poeta de gosto”.
“Canções” sai verdadeiramente do anonimato dois anos depois, quando é reeditado por Fernando Pessoa, que elogia amplamente o talento de António Botto, o que fará até ao fim da vida, em numerosos escritos, considerando-o o único esteta português.
O alarde social, no entanto, é aumentado pelo movimento lançado pela Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, apostada em calar a “literatura de Sodoma”, em que incluíam o trabalho de António Botto e que culminaria com os livros apreendidos e queimados.
O escritor não se calaria, nem se conteria. Continuou a escrever, poesia e prosa, teatro, crítica… Publicou também literatura infantil, nomeadamente O Livro das Crianças, aprovado pelo Cardeal Patriarca de Lisboa e posteriormente traduzido para inglês e irlandês, tendo esta última versão sido homologada para o ensino naquele país.
E prosseguiu, igualmente, destacando-se, exibindo-se a provocando. Altivo, exuberante, narcísico, Botto não deixava ninguém indiferente e marcava a sua cor numa sociedade mais dada a cinzentismos. Foi sempre um outsider, nunca aceite pelo snob mundo intelectual a que pertenceria por mérito dos seus escritos, mas no qual não se enquadrava, nem pelas modestas origens, nem pela postura exibicionista.
Esta exclusão, com raras exceções, revelar-se-ia igualmente com a sua demissão do humilde emprego público que ocupava, por alegadamente não saber manter o decoro no local de trabalho e, anos depois, com um exílio voluntário no Brasil, onde revelaria a sua veia de desenhista e “arquiteto”, mas acabaria por viver na miséria, consumido pela doença – presumivelmente sífilis – e a decadência criativa e estética.
A morte chegaria de forma abrupta, mas quiçá benéfica, quando foi atropelado numa avenida do Rio de Janeiro, Tinha 61 anos.
Contraditório – assumidamente homossexual, mas casado com uma mulher - controverso, polémico, desconcertante e muitas vezes esquecido. António Botto tem a sua obra dispersa. O reconhecimento tem vindo tarde e aos poucos: foi elogiado por muitos vultos e faz parte de algumas grandes antologias da poesia portuguesa (mas está omisso noutras). Mais recentemente, a sua relação com Fernando Pessoa “deu” um filme e Anna M. Klobucka publicou «O Mundo Gay de António Botto». Também a sua obra Histórias do Arco-da-velha está presentemente recomendada para o ensino, em Portugal.
Pode a crítica vir com seus tambores,
Seus clarins ou punhais envenenados,
Que eu fico tal e qual como essas couves
Que há nos grandes jardins civilizados
António Botto
Inédito retirado do livro O Mundo Gay de António Botto, de Anna M. Klobucka
À margem
Canções, de António Botto, não foi o único visado pela Liga de Ação dos Estudantes de Lisboa, que, naquele ano de 1923, jurou acossar o que apelidou de “literatura de Sodoma”. Entre os alvos desta iniciativa moralizadora estavam igualmente “Sodoma divinizada”, de Raúl Leal, e “Decadência”, da escritora Judite Teixeira. Todas estas obras acabariam por ser retiradas das livrarias e reduzidas a cinzas. A perseguição, que foi secundada pela Igreja Católica, geraria respostas e contrarrespostas, nomeadamente por parte de Fernando Pessoa. Depois de, numa primeira fase, pedir aos meninos estudantes que fizessem o que era esperado deles, ou seja, estudar e divertir-se com mulheres, se gostassem de mulheres e divertir-se de outra maneira, se essa fosse a sua preferência, porque “tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte”; acaba por ser mais assertivo, considerando os elementos daquele movimento estudantil “estúpidos e sórdidos, por não conseguirem “conceder a possibilidade de um talento alheio que não compreendem” e classificando como “entristecedora” aquela posição, tanto mais que derivava de jovens, cuja inteligência deveria ser “álacre e desperta” e, em vez disso, “rastejam na imbecilidade". A Ação dos Estudantes de Lisboa era liderada por Pedro Teotónio Pereira, que anos depois viria a ser um dos homens fortes na diplomacia do Estado Novo e chegou a ser apontado como o sucessor natural de Salazar.
Mas isso é outra história…
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* O título é do historiador Jesué Pinharanda Gomes
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Fontes
O Mundo Gay de António Botto, de Anna M. Klobucka; Sistema Solar - 2018, parcialmente disponível em: https://issuu.com/sistemasolar/docs/excerto_o_mundo_gay_de_anto_nio_bot
António Botto – Poesia; edição, cronologia e edição, Eduardo Pitta; Assírio&Alvim
Fundação Mário Soares
http://casacomum.org
Jornal Diário de Lisboa
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Jornal A Capital
https://observador.pt/especiais/a-maior-felicidade-e-ser-se-compreendido-sete-poemas-para-recordar-antonio-botto/
https://observador.pt/especiais/antonio-botto-nao-foi-so-amigo-de-fernando-pessoa-foi-o-primeiro-do-mundo-a-escrever-poesia-homoerotica-sem-veus/
Trabalhos de Rita Cipriano
https://modernismo.pt/index.php/p/708-pedro-teotonio-pereira
imagens
https://www.flickr.com/photos/biblarte/36515303426
https://www.sabado.pt/gps/palco-plateia/livros/detalhe/poesia-completa-de-antonio-botto-reunida-e-com-versos-politicos
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Can%C3%A7%C3%B5es#/media/Ficheiro:António_Botto,_Canções,_2nd_edition.jpg
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