O português que enriqueceu com sobras peixe … e muita persistência
Teve dezenas de trabalhos e negócios. Foi sempre à procura de mais e melhor, batalhando de sol a sol, inovando e arriscando sempre. Esta é a história do açoriano que chegou à América sem nada e fez fortuna com o peixe que ninguém queria.
Lourenço Oliveira embarcou para a América no dia do seu aniversário, a 27 de março de 1903. Aos 16 anos, franzino para a idade, levava pouco mais que a roupa vestida – cinco dólares emprestados. Quando voltou aos Açores, 45 anos depois, era um dos homens mais ricos de San Diego, Califórnia, proprietário, sócio ou administrador de dezenas de firmas, até de um banco. Mas, tudo começou com o peixe.
Natural da Calheta de Nesquim, Pico, seguia no encalço emigratório de outros açorianos, alguns da sua família. Desconhecia totalmente o inglês e nem na sua língua sabia ler ou escrever. Só aos 18 anos, com o triplo da idade dos seus colegas, é que aprenderia as primeiras letras.
Depressa percebeu que a América não era o tal país com ouro nas ruas, que alguns apregoavam.
Tratou de animais de quinta; partiu pedras com um malho; foi varredor; laborou numa fiação; em padarias; na distribuição de encomendas e materiais de construção – conduziu um dos primeiros camiões da cidade – e foi guarda-livros por instinto. Sempre que se sentia estagnar, mudava.
Seria sempre assim, em busca de melhor, que seguiria com a sua vida – “Para atrás [só] anda a lagosta”, era o seu mote.
Foi quando entrou no negócio do peixe que começou a prosperar.
Aí, até acertar, experimentou quase tudo: venda porta a porta e à distância; conservas; preparação de lagostas... Como bom ilhéu, foi junto ao mar, no cais de San Diego, que o seu sucesso começou a afirmar-se.
Comprou um triturador, arrendou um espaço na doca e, com isso, engendrou um sistema que permitia fornecer diretamente os navios com gelo picado, evitando transporte e derretimentos desnecessários.
Em pouco tempo, já tinha dois destes, consoante a dimensão dos navios. Foi o primeiro negócio inteiramente por sua conta que, em paralelo com outros, durou cerca de 15 anos. Depois juntou-lhe guinchos para içar as caixas de peixe, cobrando pela sua utilização.
Trocou o produto fresco, pelo seco, inventando um secador coberto e articulado, mais rápido e eficiente do que os que se usavam até então.
O seu maior projeto, no entanto, surgiu da transformação dos desperdícios de atum em adubo e ração para galinhas. Fê-lo durante 40 anos.
Tinha capacidade para processar 25 toneladas de peixe por hora, que rendiam até duas mil toneladas de farinha por mês.
A sua American Fisheries Company era a maior do ramo no estado da Califórnia.
Para tanto, foi necessário organizar excursões à fábrica, “educando” os potenciais clientes, nada habituados a utilizar aquele produto para alimentar galináceos.
A estratégia resultou e as vendas dispararam. A nutritiva ração, o óleo e um novo solúvel de água espremida do peixe, que Lawrence introduziu no mercado, eram um sucesso.
Quando as fábricas de conservas se mudaram, já a empresa se tinha convertido para fazer rações a partir do processamento de carne e ossos, antecipando-se. Conseguia absorver todas as sobras dos talhos e matadouros disponíveis do condado.
“Andava sempre à procura de qualquer coisa que encaixasse com os outros negócios” e, com isso em mente, também vendia o sebo à companhia de sabão e usara a capacidade instalada para produzir agar-agar* a partir de algas.
Foi assim igualmente que começou a fazer criação de porcos, alimentando-os com lixo doméstico tratado. Chegou a ter mais de um milhar de animais, com os quais produzia boa carne e fumados. Daqui à criação de gado bovino premiado foi um pequeno passo…
E lançou muitos outros negócios paralelos, arriscando e pedindo dinheiro emprestado para o arranque: forneceu mercadoria para as tripulações dos navios; teve uma firma de confeção e venda de café líquido embalado e um cinema; foi armador de pesca; dono de um campo de golfe, armador de pesca e investidor imobiliário. “Nunca estava satisfeito, andava sempre à procura de algo mais, algo novo, algo melhor”, dizia.
Entre tantos empreendimentos, viveu muitas aventuras e teve alguns dissabores. Pelo meio, perdeu tudo num incêndio, esteve um ano acamado com febre tifoide e suas sequelas, ganhou um processo judicial contra o Estado norte-americano; constituiu família e continuou a vingar, muitas vezes trabalhando 18 horas por dia.
Lawrence Oliver, o nome que adotou quando frequentou a escola americana, morreu em 1978, com 91 anos. Embora se tenha oficialmente reformado tempos antes, manteve atividade – e controlo – sobre os negócios quase até ao fim.
À margem
A caminhada para o sucesso de Lawrence Oliver foi árdua, mas deu frutos. Nunca se esqueceu das raízes, nem de quem o ajudou no início, tendo um papel agregador na comunidade portuguesa de San Diego, colaborando – e financiando – associações e projetos. Fez parte da direção de numerosas instituições e ajudou muitos portugueses que, como ele, rumaram ao “novo mundo” em busca de uma vida melhor.
Este açoriano foi por diversas vezes homenageado, quer pelo governo português, quer pelo brasileiro, porque lhe foram igualmente reconhecidas boas obras junto dos imigrantes brasileiros, apoiando a sua integração na nem sempre muito recetiva sociedade norte-americana.
Ambos os Estados o agraciaram com o título de Comendador, foi recebido em audiência pelo Papa e recebeu o título de Cavaleiro de São Gregório, um alto reconhecimento da igreja católica.
São múltiplas as homenagens de que foi alvo, em vários domínios, quer como empresário, quer como benemérito.
Curiosamente, Lawrence também teria um papel determinante na instalação do monumento que glorifica outro português e pelo qual Point Loma, a zona de San Diego onde viveu, é conhecida internacionalmente.
Trata-se da gigantesca estátua de João Rodrigues Cabrilho, o navegador que foi o primeiro europeu a desembarcar na Califórnia. É da autoria do escultor Álvaro de Brée e andou extraviada de Nova Iorque para São Francisco e depois para a Califórnia, foi prometida a várias cidades e esteve escondida numa garagem até que, por intervenção deste ativo açoriano, foi resgatada e colocada no sítio certo…
Mas isso é outra historia…
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*agar-agar é uma espécie de gel obtido a partir de um determinado tipo de algas e muito usado em várias indústrias, quer pelas suas características físicas, quer pelos nutrientes que possui.
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Já aqui antes falei de outro português que enriqueceu com o lixo e os desperdícios que ninguém valorizava.
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Fontes
Para trás anda a lagosta, de Lawrence Oliver. Organização, tradução e posfácio de Francisco Cota Fagundes; Coleção Açores Cultural nº10; Ver Açor, Lda; Ponta Delgada, ago 2014.
Cabrillo National Monument Foundation Overview (npshistory.com)
Point Loma listing has ties to Portuguese pioneer - The San Diego Union-Tribune
Ágar-ágar – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Imagens
Library Digital Collections | UC San Diego Library (ucsd.edu)
Documentos:
16827-86 CD M0110 (1216-3282-0727) OP_16827-86
84:14821-8 CD M0014 (0132-3301-3078) 84_14821-8
4533-5 CD M0006 (0132-3301-3108) 4533-5
OP 16264-1002 CD M0109 (1216-3282-0730) OP_16264-1002
OP 15748-682 CD M0105 (1216-3282-0454) OP_15748-68315748-682
OP 15748-643 CD M0105 (1216-3282-0454) OP_15748-643
UT 8248-888 CD M0099 (1216-3282-0448) UT_8248-888
86:15877-714 CD M0083 (1216-3282-0646) 86_15877-714
Sensor, Guy (Guy Sidney), 1888-1969
5-187 CD M0091 (1216-3282-0726) 5-187
5-188 CD M0027 (0132-3301-3085) 5-188
6-122 CD M0027 (0132-3301-3085) 6-122
Booth, Larry (Leonard D.), 1921-
: S-1388-3 CD M0024 (0132-3301-3046) S-1388-3
S-1388-2 CD M0024 (0132-3301-3046) S-1388-2
S-1386-7 CD M0024 (0132-3301-3046) S-1386-7
91:18467-112 CD M0034 (0088-3263-3280) 91_18467- 112
Ed Fletcher Papers. MSS 81. Special Collections & Archives, UC San Diego.
The Portuguese fishing families of Point Loma | San Diego Reader
San Diego History Center
https://photostore.sandiegohistory.org/
SDHS 3082; 484; 81:9628