O verdadeiro Capitão Roby não era um burlão sedutor
A sua morte também dava um filme, mas acabou quase esquecida, entre as muitas que Portugal sofreu ao defender as suas possessões em África. Os dois irmãos Roby queriam ser heróis.
Sabe quem era o capitão Roby? Provavelmente responderá que foi um pinga-amor célebre nos anos 80 do século XX por, alegadamente, ludibriar as suas apaixonadas, façanha que até valeu uma série televisiva baseada na sua vida. O problema é que o verdadeiro Capitão Roby, que poucos conhecem, nada teve que ver com tais proezas, embora a sua vida - ou antes, a sua morte - também pudesse dar um filme, muito menos picante, mas bem mais trágico. Há exatamente um século, os seus restos mortais chegavam a Portugal, quase ao mesmo tempo que os do Soldado Desconhecido, que bem podia representar.
Em março de 1921, o capitão Sebastião Luiz de Faria Machado Pinto Roby de Miranda Pereira, regressou à metrópole como herói, embora morto, a bordo do navio “Zaire”, para finalmente repousar na sua terra natal, Braga. Tinha sucumbido quase seis anos antes, numa emboscada ocorrida em Angola, que as crónicas da época classificam como um autêntico massacre. Tinha apenas 31 anos de idade e participava nos esforços portugueses para defender o seu “Império” face à ameaça alemã, ainda antes da entrada oficial do nosso País na I Grande Guerra.
Estava em África na coluna do general Pereira d’Eça e liderava uma companhia indígena. Ofereceu-se para levar por diante uma operação de reconhecimento extremamente arriscada e que implicaria a mais que provável chacina do grupo que a empreendesse.
Tratava-se de verificar as condições de um trilho importante para a movimentação das tropas, na província do Huila. Isto obrigava a uma incursão em área conhecida pelo terreno inóspito e os povos revoltosos.
O seu superior não o queria expor a tal perigo, dada a sua patente, ao que Sebastião terá respondido que “quando se serve a pátria não há postos, mas apenas deveres a cumprir”.
Face a tal determinação, seguiu comandando vinte homens, entre os quais um cabo. Não levavam bússola, o que terá contribuído para se afastarem da rota inicial e se irem colocar precisamente “na boca do lobo”, na zona de Quiteve.
Corajoso, confiante na sua missão pacífica e na reduzida dimensão do seu grupo, que achava não inspirar animosidade, Roby não soube reconhecer os sinais de perigo real ao ser sucessivamente abordado por indígenas.
Quando se deu conta, já era tarde.
O Capitão ainda deu ordem de fogo e disparou alguns tiros, mas caiu fulminado no chão, trespassado por uma bala que lhe entrou pelas costas.
Os atacantes pediram então as armas, as munições, os animais e o corpo de Roby. O temerário cabo, que passou a ter a voz de comando, recusou as exigências, fez atar o cadáver do Capitão a um dos camelos, como se estivesse vivo, e ordenou fogo, em nome daquele.
A ordem repetir-se-ia várias vezes, até estarem a salvo, dez horas e 40 quilómetros depois. Chegaram exaustos, mas apenas perderam um homem pelo caminho.
Sebastião Roby, Capitão de Artilharia, feito mártir nesta contenda em que perdeu a vida, a 10 de junho de 1915, receberia a Cruz de Guerra de 1ª classe, a título póstumo.
Seria também homenageado, num monumento em Braga e na toponímia de várias cidades, aliás como o seu irmão João, segundo tenente e também “herói” da nossa guerra em África.
Mais velho, experiente e já amplamente condecorado, João Roby morrera uma década antes, na mesma região angolana e igualmente em resultado de uma ação voluntariosa, participando no que ficou conhecido como “o desastre do vau de Pembe”, perto do rio Cunene, onde pereceram 300 homens.
A campanha onde tal mortandade aconteceu destinava-se a submeter os líderes tribais e antecipar a reivindicação alemã de territórios, em resultado do acordo luso-germânico de 1886, que redefinia a fronteira com a atual Namíbia, mas que, no terreno, ainda não tinha sido efetivamente traçada.
Não era suposto João participar nesta operação, porque, depois de servir durante muito tempo e com louvor, estava de regresso à metrópole, de licença.
Soube do projeto durante a escala em Luanda e, tanto pediu e insistiu, que o deixaram integrar o contingente.
Há muitas versões contraditórias sobre o que efetivamente aconteceu nesse dia 25 de setembro de 1904, particularmente sobre a atividade de Roby, amiúde engrandecido de forma épica.
Certo é que morreu no decorrer da ação e, ao contrário de Sebastião, os seus restos mortais nunca foram identificados. Tinha 28 anos.
Em Moçambique, a sua cara foi usada num selo e, em 1973, a Armada Portuguesa, onde havia servido, deu o seu nome a uma corveta.
À Margem
Há cem anos, vários países entenderam que deviam prestar homenagem ao “soldado desconhecido”, simbolizando todos os que haviam tombado pela Pátria ao longo dos tempos sem que os seus corpos fossem recuperados e identificados. Foram criados monumentos, túmulos representativos em honra desses “heróis” aos quais as nações, simbolicamente, devem, muitas vezes, as suas fronteiras e a sua autonomia. Em Portugal, em 18 de março e em 9 de abril de 1921, o Governo autorizou a trasladação dos restos mortas de dois soldados desconhecidos, respetivamente, de França (Flandres) e África (Moçambique), para o Mosteiro de Santa Maria da Batalha, onde teve lugar a cerimónia de consagração da Sala do Capítulo como panteão do “soldado desconhecido” português.
É um espaço sóbrio, que apela à introspeção, com permanente guarda de honra, onde se encontra o “Cristo das Trincheiras”, trazido do local onde tantos portugueses morreram na I Grande Guerra (Neuve-Chapelle – França).
Ali perto, no antigo refeitório, está agora instalado o Museu da Oferendas ao Soldado Desconhecido, onde figuram muitos objetos, entre os quais, a última bandeira portuguesa arreada de Macau em 1999, pelo último governador, Rocha Vieira, símbolo do último reduto do “Império” por cuja conquista e manutenção tantos sacrifícios se fizeram e inúmeras vidas se perderam. Precisamente como naquela que ficou conhecida como a Batalha de Macau, em 1622. Foi a única contenda significativa travada por tropas de países europeus nos mares da China e na qual os portugueses, em inferioridade numérica e de meios, levaram a melhor sobre os holandeses.
Mas isso é outra história…
............................
Já aqui antes falei da trágica participação de Portugal na I Grande Guerra:
Instantâneos (52): a desolação feita obra de arte - O sal da história (sapo.pt)
A tragicomédia do soldado João Ninguém na I Grande Guerra - O sal da história (sapo.pt)
(14) Instantâneos: O “Cristo das trincheiras” e a abóbada - O sal da história (sapo.pt)
…………………..
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Illustração Portugueza
II série; nº787 – 19 març. 1921
Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro
2ª série; nºs 10 e 11 – ago/dez 1934
Boletim da Agência Geral das Colónias
Ano VIII; nº71; mai 1931
Disponível em: https://espace.cdu.edu.au/eserv/cdu:6586/AraDA_6586.pdf
João Roby e o desastre do Vau de Pembe (Angola, 1904): um herói, um mártir, más táticas, as circunstâncias imprevistas… e alguma inabilidade – Autópsia de uma derrota militar; Investigação de João Freire, realizada no âmbito da Academia de Marinha – Lisboa 2017
Disponível em: Livro J.Roby.pdf (marinha.pt)
Soldado Desconhecido (momentosdehistoria.com)
Soldado Desconhecido - Mosteiro da Batalha (mosteirobatalha.gov.pt)
Imagens
5330333_UCc8U.jpeg (163×202) (sapo.io)
Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Por Joseolgon - Obra do próprio, CC BY-SA 3.0,
Battle of Macau, 21-24 June 1622. Portuguese repel Dutch attack..
Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=168652
Portugal na Grande Guerra. Desnorte, doença e descalabro – Observador
Selo Joao Roby
1967 - João Roby (selomania.com.br)
Academia Militar - Sebastião Luiz de Faria Machado Pinto Roby de Miranda Pereira