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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O vidro português nasceu em Coina

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Real Fábrica de Vidros Cristalinos de Coina é uma realidade quase esquecida, mas foi pioneira na Península Ibérica. Tinha o monopólio da produção de vidros finos e vidraças, chegou a enviar produtos para China e guarneceu todo o gigantesco Convento de Mafra.

A tradição vidreira nacional é habitualmente associada à Marinha Grande. Muito antes, no entanto, a experiência da moderna produção de vidro deu os primeiros passos na Margem Sul do Tejo. A Real Fábrica de Vidros Cristalinos de Coina (1719-1747) foi uma estrutura pioneira na Península Ibérica, precursora de técnicas e modelos que continuaram a usar-se durante séculos. No seu tempo, era a única fornecedora de vidros finos, vidraças e espelhos em Portugal. Foi um projeto acarinhado por D. João V, que fez questão de visitar as instalações e era consumidor da enorme panóplia de produtos disponível.

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Havia muito que a coroa pretendia lançar-se no sector vidreiro. A oportunidade surgiu num contexto de grande desenvolvimento de manufaturas e obras públicas em Portugal. Coina* tinha uma localização estratégica face à região e reunia condições essenciais para acolher tal iniciativa: era zona de finas areias, fundamentais à fusão do vidro; rodeada de vastos pinhais que serviriam de combustível para os fornos, e detinha uma experiência técnica ancestral, acumulada localmente e transmitida sobretudo por estrangeiros versados nesta “arte”.


Foi um período de grande expansão e descoberta das potencialidades do vidro, que começava a estar presente em todo o lado. Ali formaram-se os primeiros mestres vidreiros portugueses, fizeram-se experiências inéditas, atrevidas até, desvendando-se os mistérios da atividade, aprofundando técnicas e métodos. 

vidro 7.JPGA real manufatura, que forneceu a luxuosa e variadíssima construção do Convento de Mafra – entre outros monumentais edifícios - chegou a ter 15 estancos aos quais cabia a distribuição dos objetos fabricados pelos clientes de todo o País. Para viabilizar a produção nacional, proibiu-se a importação e deu-se à administração da fábrica autoridade para revistar navios suspeitos de contrabando.

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Dali chegaram a embarcar delicados objetos para a China e a profusão de formas e utilizações era esmagadora, dos mais comuns copos e vidraças, aos delicados equipamentos de laboratório; dos curiosos urinóis, a graciosos bibelots e frascos de perfume e outras embalagens com medida certa; das úteis mamadeiras, a espelhos, escaparates, pingentes de candeeiros, joias – por vezes mais apreciadas que em diamante - e tudo o mais que se possa imaginar, já com grande sofisticação – vidros lapidados, esmaltados, com exuberantes e intrincadas decorações , ao gosto barroco, que então se inaugurava e estava também patente na arquitetura.

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Coina era considerada uma grande fábrica, no panorama português e europeu, tendo empregado em simultâneo mais de 30 adultos e um número indeterminado de crianças, para tarefas de limpeza em zonas de difícil acesso.

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O pessoal vidreiro, que vivia em torno da fábrica, seria alvo de grande curiosidade, sobretudo porque incluía muitos estrangeiros. Como sempre acontece, oficializaram-se casamentos e outro tipo de ligações com os locais, misturando a vida de ambas as comunidades.

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Os mestres deste ofício eram muito disputados, sendo comum a espionagem industrial. Eram de grande valor os segredos das misturas de substâncias que, depois de fundidas, davam origem aos vários tipos de vidro, pois delas dependia a “identidade” daquele material, não repetível por outro “alquimista”.
Esta é também uma história marcada por conflitos internos, resultantes das diferentes correntes de opinião e tecnologia em disputa: vidros de inspiração veneziana; ao gosto da boémia – que Coina foi a primeira produtora em solo nacional – ou de tecnologia inglesa.
A esmagadora variedade de produtos – o objetivo era suprir todas as necessidades do mercado – seria um dos coveiros desta fábrica, que não se especializou. Para o fim, contribuíram decisivamente o decrescente apoio estatal, as más e até dolosas decisões das administrações, o aumento do preço de novos combustíveis - como carvão de pedra - e a feroz oposição ao abate desenfreado de árvores necessárias ao aquecimento dos fornos, em laboração constante.
Quando a real fábrica fechou portas, a sua herança, no entanto, não se perdeu, antes, perpetuou-se na Marinha Grande, onde se usaram os catálogos de Coina como guia, pois eram um verdadeiro manual do sector, o principal fundo vidreiro do país durante séculos. Muitos objetos ali produzidos podem ainda hoje ser admirados em museus e monumentos nacionais.

À margem

Foi a própria Fazenda Real que se encarregou da gestão da fábrica de Coina no primeiro período, entre 1719 e 1731, seguiram-se, nem sempre com os melhores resultados, administrações conflituosas e administradores nomeados: o inglês João Butler, Joam Poutz e, finalmente, o irlandês John Beare, que transferiu a indústria – pessoal, maquinaria, ferramentas e conhecimentos - para a Marinha Grande e ali laborou mais vinte anos, até se arruinar. Foi a este que o conhecido Guilherme Stephens adquiriu edifícios e terreno onde ergueu um grande complexo industrial que levaria a produção de vidro nacional a um novo patamar, recordado até hoje no museu instalado no mesmo local. Para tal sucesso, muito contribuíram os privilégios fornecidos pela “coroa” - nomeadamente a lenha do pinhal de Leiria - sem os quais, Stephens, aliás, não teria aceite tal missão que D. José lhe atribuiu. O empresário, que na época explorava fornos de cal na zona de Alcântara e colaborava no esforço para a reconstrução de Lisboa após o grande terramoto, foi contrariado dedicar-se ao sector vidreiro, sobre o qual pouco mais conhecia para além do descalabro financeiro em que tinham caído os seus antecessores nesse empreendimento.

Mas isso é outra história...
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*Atualmente Coina pertence ao concelho do Barreiro.

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Fontes
A Real Fábrica de Vidros Cristalinos de Coina (1719-1747) e o vidro em Portugal nos séculos XVII e XVIII, IPPAR, Lisboa – 2002, de Jorge Custódio.

Imagens (por ordem)

The Brothers Clarke with Other Gentlemen Taking Wine (Os irmãos Clarke e outros senhores tomando vinho) - Gawen Hamilton, disponível em www.artchive.com

D. João V bebendo chocolate quente na casa do Duque de Lafões – autor não identificado; Museu Nacional de Arte Antiga. Disponível em:
https://www.reddit.com/r/portugal/comments/78pvux/rei_dom_joão_v_bebendo_chocolate

Na obra citada anteriormente:

Natureza-morta com porcelana e vidros. Óleo sobre tela. Autor anónimo italiano (?), finais do séc. XVIII. Museu de Évora, in. Nº864.

O Alquimista no laboratório. Óleo sobre madeira, atribuído a David Teniers II, primeira metade do século XVIII, Museu de Évora, inv. Nº 820.

Pequena oficina de vidreiro em França, aspeto geral. Meados do séc. XVIII. Desenho de Radel, gravura de Bernard, in "Verrerie en bois ou petite verierre a pivvette; Encyclopédia ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et Métiers.

Grando oficina de fabrico de vidraça pelo processo de disco. Interior, Aspeto geral. Meados do séc. XVIII. Desenho de Radel, gravura de Bernard, in "Verrerie en bois ou grand verierre a vitre ou en plats, dite pivette"; Encyclopédia ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et Métiers.

Manufacture de Rouelle. Saída da chapa de vidro do forno de recozimento. Meados do séc. XVIII. Desenho de Goussier, Gravura de Bernard, in "Manufacture des graces", Encyclopédia ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et Métiers.

Operação de recolha dos vidros da arca de tempero. Desenho de Radel, gravura de Bernard, in"Verrerie en bois ou petite verierre a pivvette; Encyclopédia ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et Métiers.

Transporte de vidro para armazém.Desenho de Radel, gravura de Bernard, in"Verrerie en bois ou petite verierre a pivvette; Encyclopédia ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et Métiers.

 

 

 

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