Onde foi parar o dinheiro dos órfãos?
Durante séculos, o dinheiro dos órfãos portugueses foi usado e abusado para os mais variados fins, emprestado a juros e requisitado pelo Estado, quando a penúria das finanças públicas o exigia. Financiou até os homens mais ricos do seu tempo e ajudou a custear campanhas militares, como a desastrosa incursão em Alcácer Quibir.
Quando alguém de posses morria deixando filhos menores, os bens do falecido eram geridos por um magistrado – juiz ou curador dos órfãos, em conjunto com o tutor (o progenitor sobrevivo ou outro parente) e um conselho familiar. Embora o funcionamento destas estruturas tivesse evoluído ao longo do tempo, o objetivo último era defender os interesses das crianças e assegurar a sua sobrevivência.
Seria de esperar que, assim protegidos, os pertences estivessem a salvo da cobiça alheia, não fosse o facto de ser comum requisitá-los para outros fins e emprestá-los a juros.
Funcionava como uma espécie de “banco” dos órfãos, a que qualquer pessoa podia recorrer, embora estivessem em vantagem as que tinham conhecimentos para abrir portas e obter autorização dos envolvidos.
Em escritura pública, ficavam expressas as condições do empréstimo, normalmente com a hipoteca de um bem do devedor, para garantir o pagamento da dívida.
Era uma forma de aumentar o pecúlio dos menores, rentabilizando os seus haveres, mas o negócio nem sempre corria bem, porque muitos devedores não restituíam o valor mutuado ou falhavam no pagamento dos juros acordados.
Como o provam os numerosos registos que chegaram aos nossos dias, na letra nem sempre encantadora dos tabeliões, este foi um expediente muitíssimo usado – e abusado - por um vasto leque de pessoas, em todo o País, dos mais modestos, aos mais abastados, como o opulento José Maria dos Santos (ver à Margem).
O próprio Estado, não teve escrúpulos em usar o cofre dos órfãos, por vezes com resultados desastrosos e, em diversas ocasiões, foram os próprios depositários que falsificavam inventários, adquiriram a “preço de saldo” os haveres dos órfãos ou desviaram as verbas que entendiam, para fins particulares e sem qualquer controlo, originando desfalques só conhecidos quando algum superior mais zeloso exigia ver as contas.
O mal, no entanto, vinha de longe. Em 1535, é criado o Regimento Sobre o Dinheiro dos Órfãos, com o intuito de prevenir os prejuízos resultantes do investimento das heranças em negócios ruinosos, bem como atalhar a morosidade e os custos despropositados e falaciosos que alguns magistrados de má-fé imprimiam aos processos de devolução dos bens, quando os menores se emancipavam.
Não obstante, quatro anos depois, o rei autorizava que se levantassem verbas do cofre dos órfãos para pagar a mercadores que trouxessem cereais à cidade do Porto, a braços com falta de pão e consequente fome das suas gentes.
Dois mil cruzados do mesmo cofre são emprestados, em 1561, ao Convento da Madre de Deus de Monchique, mas também era frequente os municípios recorrerem a esta “banca”, como fez Benavente, em 1560, para reparar a ponte da vila, que estava em ruínas; ou Braga, dois anos mais tarde, para financiar o envio de procuradores à Corte; ou, ainda, Coimbra, para reparar fontes e a passagem sobre o Mondego, já no início do século XVII.
Como se vê, as heranças dos menores sem pais serviam para tudo e todos. Não raramente, só não serviam aos seus efetivos proprietários.
E, o que dizer quando o próprio rei dispõe destes pertences para financiar campanhas bélicas, como fez D. Afonso V e D. Sebastião? Este usou o dinheiro, as peças de ouro e prata dos órfãos para suportar parte da dispendiosa expedição ao Norte de África, durante a qual se travou a tristemente célebre batalha de Alcácer Quibir…e todos sabemos como essa terminou e as consequências que teve, para o monarca e para o Pais.
Não é difícil perceber que fim levaram tais legados.
Diga-se, no entanto, em abono da Coroa, que o Cardeal D. Henrique, que sucedeu no trono de Portugal, ordenou a restituição do dinheiro, mas tal não chegaria a concretizar-se na totalidade.
À margem
José Maria dos Santos, um dos portugueses mais abastados do seu tempo – proprietário de numerosas e extensas herdades, produtor de vinho e de infindáveis bens agrícolas - no seu percurso para alargar domínios no Alentejo, comprando as terras contíguas ao Condado de Palma, que já detinha, recorreu ao curador geral dos órfãos da Comarca de Alcácer do Sal.
Mostrando toda a argúcia para o negócio que se lhe reconhecia, em 1879, contraiu um empréstimo de 15 contos de reis, que a menor Maria Joana Branco* tinha herdado do pai, José António Gonçalves Branco. Com esse dinheiro, arrematou as herdades de Vale de Coito, Fangarifau e Sesmaria da Charneca, pertencentes … à mesma menor, e que ficaram hipotecadas para assegurar o pagamento.
O crédito renderia um juro de seis por cento e deveria ser saldado no prazo de cinco anos. Demorou uma década.
Mas, se José Maria dos Santos acabou por restituir o dinheiro e cumpriu escrupulosamente com os juros devidos, outros não o fizeram.
E, no melhor pano cai a nódoa, porque os exemplos de incumprimento vêm de cima.
São os casos de Francisco de Paula Leite e de António de Campos Valdez, ambos presidentes da Câmara Municipal de Alcácer do Sal em diferentes períodos, nas décadas de 70 e 80 do século XIX e, este último, cerca de vinte anos empresário do Real Teatro de São Carlos, em Lisboa.
O primeiro, acabou por perder a Herdade de Espim, hipotecada para garantia do crédito e que seria comprada pelo mesmo José Maria dos Santos, que saldou a dívida e os juros em falta. O segundo não teve tempo – ou meios - para pagar as dezenas de calotes que contraiu nos últimos anos de vida. Deixaria essas dívidas como legado aos seus próprios sete órfãos.
Mas isso é outra história…
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A orfã Maria Joana Branco casou com o médico José Maria Gentil, do qual já aqui falei, irmão do fundador do IPO, Francisco Gentil.
Já aqui falei da Herdade de Palma e das suas célebres e inspiradoras meloas.
Já aqui falei dos pobres órfãos enjeitados deixados na roda.
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Fontes
Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº18 das Notas do Tabelião Santos do Julgado de Alcácer do Sal, PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0045.
Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº21 das Notas do Tabelião Santos do Julgado de Alcácer do Sal, PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0047.
Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº26 das Notas do Tabelião Santos do Julgado de Alcácer do Sal, PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0052.
Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº28 das Notas do Tabelião A. P. Mendonça do Julgado de Alcácer do Sal PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/005.
Arquivo Distrital de Setúbal, Cartório Notarial de Alcácer do Sal, Notas para Escrituras Diversas, Livro nº30 das Notas do Tabelião A. De Melo do Julgado de Alcácer do Sal PT/ADSTB/NOT/1CNASL/001/0056.
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Fundo João Gabriel Posser de Andrade, em organização.
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Comarca de Alcácer do Sal, Cartório do 1º Ofício, Livro de registo de articulados e sentenças, PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/06/005.
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Comarca de Alcácer do Sal, Livro de registo das avaliações judiciais, PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/07/001.
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal, Comarca de Alcácer do Sal, Cartório do 2º Ofício, Livro de registo de articulados e sentenças, PT/AHMALCS/CMALCS/COMARCA/05/005.
Maria de Fátima Machado, Os órfãos e os enjeitados da cidade e do termo do Porto (1500-1580), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais, 2019. Disponível aqui: tese_v18 (up.pt)
João Vieira Gomes, Juízos dos Órfãos do Antigo Reigime e o Estado da Questão, Nova Série, nº1, Arquivo Histórico da Madeira, 2019.
Imagens (meramente ilustrativas de instituições de acolhimento a órfãos)
Arquivo Municipal do Porto, Orfeão do colégio dos órfãos, PT-CMP-AM/COL/GRA/D.GRA.1.172.
Arquivo Municipal do Porto, Coleção Ephemera, Asilo Colégio do Sagrado Coração de Jesus, PT-CMP-AM/COL/EPH/D.EPH:A1.104.
Arquivo Municipal do Porto, Grupo de crianças, Foto Guedes, PT-CMP-AM/PRI/FGD/F.NV:FG.M:11:67.
Arquivo Municipal de Lisboa, colónia balnear, Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001463
Arquivo Municipal de Lisboa, Asilo de Crianças, Alberto Carlos Lima, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001520