Os enigmáticos mortos do Santuário do Senhor dos Mártires
Ossadas de pelo menos vinte indivíduos, alguns dos quais, certamente, cavaleiros da Ordem de Santiago de Espada, com sinais de grande violência e brutalidade, para além de moedas e outros pequenos objetos com mais de 800 anos são alguns dos segredos que o Santuário do Senhor dos Mártires nos revela.
Uma pesada porta com barras de ferro limita a entrada naquele exíguo espaço, na lateral direita do altar-mor da igreja. Só os vitrais emprestam algum colorido ao sepulcro. A atmosfera é pesada, opressiva, até porque as frias paredes em pedra irregular impõem a sua presença, subjugando os vivos e protegendo os mortos. Era uma paz destinada à eternidade, que agora se quebra em nome do conhecimento histórico.
Não é de estranhar que se encontrem restos mortais por estas paragens. Afinal, toda a encosta onde se situa o Santuário do Senhor dos Mártires, em Alcácer do Sal, é usada para enterramentos há pelo menos 26 séculos, sendo especialmente relevante a necrópole da Idade do Ferro (sec. V a III a. C) e o facto de a igreja ter sido panteão da Ordem de Santiago.
Na capela do Tesouro – assim denominada porque guardaria relíquias e outros objetos com valor de devoção - foram agora postas a descoberto ossadas de duas dezenas de pessoas.
Metade repousava na área mais larga do recôndito compartimento, muito mexida e com vestígios dos séculos XV e XVI, onde se encontraram despojos de adultos e crianças - três bebés - com enterramentos sucessivos e no interior de um ossário.
Sabe-se que ali estariam sepultadas as famílias Fonseca e Abreu, a quem, presumivelmente, pertencem os restos mortais agora trazidos à luz do dia.
Estes dão conta de uma penosa existência, com doenças respiratórias infecciosas, como tuberculose, que terão persistido em vida tempo suficiente para deixar marcas ósseas. Vistas também lesões traumáticas, deformações condicentes com joanetes e até sinais de uma actividade física desgastante, algo curioso em pessoas com algum poder económico para a época.
Mas, é o espaço mais estreito, mais antigo e enigmático, que nos reserva as maiores surpresas.
Foi usado para albergar os túmulos dos mestres da Ordem de Santiago, que até ao século XV (1482) teve a sua sede portuguesa precisamente em Alcácer do Sal.
Em 1333, com a construção de uma capela maior – conhecida hoje como a capela dos Mestres –- esses cavaleiros mais importantes foram para ali transferidos.
Se assim é, então, quem são estes homens adultos, inumados numa acanhada ala com pouco mais de quatro metros quadrados e em circunstâncias no mínimo estranhas?
É muito provável que sejam também cavaleiros, freires da ordem com alguma importância e que ali foram depositados desde a fundação da capela, no século XIII, embora só o estudo das ossadas e tudo o mais que ainda for revelado possa ajudar a compreender melhor.
Os seus esqueletos, - para já, uma dezena - aparentemente nunca tocados em cerca de oito séculos, contam histórias de grande sofrimento e violência.
Um ostenta lesão no fémur compatível com queda ou embate de arma pesada, que lhe terá provocado, seguramente, dores lancinantes durante os últimos anos de vida. É até admirável que tenha sobrevivido a tal ferimento em tempos tão recuados e sem os modernos cuidados médicos.
Dois apresentam-se decapitados, embora uma das cabeças se encontre no local (mas sem mandíbula), faltando a este também as duas mãos.
Fica por explicar o que é que lhe aconteceu, em vida ou em morte, para que estejam assim, desmembrados.
Detetam-se ali pelo menos três camadas de enterramento distintas. Os superficiais estariam apenas envoltos em mortalhas, enquanto os mais profundos, talvez mais abastados, foram colocados em caixões. Não que os ditos ali persistam. O tempo já se encarregou de consumir a madeira. Permanece o vestígio em formato rectangular e os pregos, criteriosamente colocados a cada 20 centímetros, fantasmagoricamente segurando algo que já não existe.
Todos os detalhes, desde a posição e orientação espacial dos esqueletos, aos objetos com que foram encontrados – moedas de vários reinados, um crucifixo, fivelas, botões, contas, alfinetes, colchetes, contas de terço e pregadeiras, por exemplo – mas também fragmentos de cerâmica, madeira, tecido, vidro e azulejos, ajudarão a explicar quem eram e porque ali foram depositadas aquelas pessoas.
Que estranhas histórias terão para contar, só mais tarde se saberá, mas a curiosidade é muita.
À margem
O Santuário do Senhor dos Mártires, um dos templos cristãos mais antigos do sul do País, inspira devoção desde tempos imemoriais.
Originalmente denominado de Santa Maria ou Nossa Senhora dos Mártires é associado a diversos milagres, razão pela qual, durante muitos séculos, tem sido local de romarias e peregrinações.
É a sobreposição de tanta fé ali depositada ao longo dos tempos, de toda esta história riquíssima, bem patente também nas épocas e estilos construtivos, que torna o Santuário do Senhor dos Mártires um dos espaços mais interessantes do concelho de Alcácer do Sal, como o provam, mais uma vez, os achados agora revelados.
E, que dizer da enigmática imagem colorida em pedra ali existente, que sorri com o menino ao colo e um cavaleiro de Santiago a seus pés.
A mão direita repuxa o manto de forma graciosa, mostrando o cinto em cabedal que lhe marca a cintura, como aquele que a própria mãe de Jesus terá mostrado a S. Tomé, para que este acreditasse que era mesmo ela que estava a ser levada para os céus.
Todos lhe chamam Nossa Senhora da Cinta.
Mas isso é outra história…
Fontes
Toda a informação sobre a escavação em curso foi fornecida pela arqueóloga Rita Balona (Município de Alcácer do Sal) e pela antropóloga Liliana Matias de Carvalho, do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, também contratada pelo município.
PEREIRA, M. Teresa Lopes – “O Culto de Nossa Senhora dos Mártires em Alcácer do Sal, a Senhora da Cinta e as Cantigas de Santa Maria”. Medievalista [Em linha]. Nº6, (Julho de 2009). Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/. ISSN 1646-740X.
Imagens
Fornecidas pela equipa de escavação
Nossa Senhora da Cinta:
Maria Teresa Lopes Pereira, obra citada.