Os Espírito Santo que nasceram no Alentejo
As ligações da família Espírito Santo à produção de arroz e ao Alentejo Litoral não nasceram com a compra da Comporta, em 1955. Remontam ao século XIX, quando veio ao mundo, em Alcácer do Sal, aquele que daria origem a um dos ramos mais bem-sucedidos deste clã, com múltiplas relações, familiares, de negócios e amizade àquele concelho.
Custódio nasceu a 2 de junho de 1868 e recebeu o sacramento do batismo na Matriz de Alcácer do Sal. Era o segundo de três filhos do casal António Pedro e Maria da Anunciação Moniz Galvão, ele natural de Lisboa; ela, de Coimbra. Do tio, que assumiu o papel de padrinho, herdaria o nome e a profissão que escolheria mais tarde.
António Pedro era engenheiro, mais especificamente, tinha competências técnicas para fornecer e montar moagens. Nada mais útil num concelho como Alcácer do Sal que, por aquela altura, passava por grandes transformações, com o arroteamento de terras e o incremento de novas culturas, como o arroz.
Pelos registos de casamentos e batizados percebemos que o casal Moniz Galvão era extremamente bem-relacionados naquela vila alentejana. Era próximo de José de Melo Silva Lobo, que fora presidente da comissão local destinada a averiguar o impacto da mal-afamada cultura do arroz na saúde das populações; de António Mendes de Almeida, secretário da mesma comissão e presidente da câmara municipal de Alcácer do Sal, e de João Alves de Sá Branco, poderoso lavrador na região, que viria a ser avô do conhecido cavaleiro tauromáquico João Branco Núncio.
Os três filhos de António Pedro e Maria da Anunciação nasceram em Alcácer do Sal, onde aquele empreendedor lisboeta era proprietário de um descasque de cereal que também produzia, chegando a ganhar uma medalha de bronze com arroz descascado na exposição universal Paris, em 1867
Provavelmente terá apoiado a implantação de estruturas como aquela que possuía – para tratar arroz - junto dos proprietários alentejanos, entre os quais, certamente, granjeou admiração e respeito, tanto que é proposto, por exemplo, como sócio extraordinário do seleto Círculo Eborense.
Apesar deste aparente sucesso, o filho (na imagem) escolheu outro percurso profissional. Quando ingressou na Universidade de Coimbra, em 1887, ainda morava em Alcácer do Sal - na rua do Forno.
Passa cerca de sete anos na “cidade dos estudantes” e integra a Estudantina Conimbricense, como percussionista, formando-se em medicina em 1894/1895.
Não consegui saber como e onde conheceu Maria Justina do Espírito Santo Silva, mas, em finais de 1897, tratam das burocracias tendentes ao seu casamento. Estre a documentação necessária sobressai um acordo pré-nupcial destinado a acautelar as posições dos nubentes. A noiva acabara de herdar metade dos bens paternos, onde se contavam onze edifícios urbanos, o mais importante dos quais, a casa onde moravam e que o pai construíra, na avenida da Liberdade.
Trata-se da única filha do primeiro casamento de José Maria Espírito Santo Silva (na imagem). Praticamente do nada, este iniciara, em 1869, com apenas 19 anos, um estabelecimento para o comércio de lotarias, câmbios e títulos, que depois expandiria para a concessão de créditos e a negociação de fundos públicos, nacionais e estrangeiros.
Estavam ali dados os primeiros passos para a carreira de banqueiro, que seria seguida pelos seus descendentes e daria origem ao tão conhecido Banco Espírito Santo e ao grupo empresarial com o mesmo nome.
Em 1915, quando decide criar a firma bancária J. M. Espírito Santo Silva & Cª, com um capital social de 400 contos de reis, reservou para si uma quota de 360 contos e distribuiu o restante por amigos e familiares. O genro, o médico alcacerense Custódio Moniz Galvão, ficaria com uma parte de dez contos de reis e chegaria a assumir funções na empresa.
Do casamento de Custódio com Maria Justina nasceu Maria Cristina e Fernando Eduardo. Apenas este teve descendentes: Maria do Carmo Arzina Moniz Galvão (na imagem), que não só herdaria a totalidade dos bens dos pais, como da tia. Já multimilionária, casaria, em 1954, com o primo Manuel Ricardo Pinheiro Espírito do Santo Silva, também bisneto do banqueiro fundador e filho do homem que, no ano seguinte, comprou a Herdade da Comporta.
Fundem-se assim dois ramos da família e respetivas fortunas.
À margem
Para além das posições assumidas no Grupo Espírito Santo, o ramo Moniz Galvão é responsável pela fundação de empresas como a MOCAR, representante e importadora das marcas Alfa-Romeo, Pegeot e Packard, à qual sucedeu a SANTOGAL, que representa 30 marcas automóveis diferentes. O marido de Maria do Carmo Arzina Moniz Galvão (Ninita), Manuel Ricardo Pinheiro Espírito do Santo Silva, esteve entre o grupo de familiares na origem do Grupo Espírito Santo, que agrega a área bancária e os restantes negócios – não financeiros – do clã.
Não se estranha, pois, que, no início dos anos 2000, já viúva, esta neta do alcacerense Custódio José Nazareth Moniz Galvão fosse a mulher mais rica de Portugal e, entre os da sua família, talvez a mais discreta, não se lhe conhecendo quaisquer sinais de ostentação e fugindo da exposição pública como o diabo foge da cruz.
Até morrer, em 2020, contrastando com outros elementos da família - que deram à Comporta destaque internacional - Ninita tinha horror de ser mencionada nas revistas cor-de-rosa e evitava ao máximo ser fotografada em público.
Mais ou menos reservados são os protagonistas das variadas ligações familiares, profissionais e de amizade que os Espírito Santo mantiveram no concelho de Alcácer do Sal, em alguns casos ainda antes de comprarem aquela propriedade entre os arrozais e o mar.
Outras famílias de quem são próximos já ali possuíam vastos territórios. São estes os casos dos Posser de Andrade, que herdaram a gigantesca Herdade de Palma; os Vilhena, detentores de Porches; os Van Zeller, donos de Algalé; ou os Holstein Beck, duques de Palmela.
Sobre estes últimos conta-se a história de, a dada altura, por falta de espaço numa propriedade urbana, terem desmontado uma capela, tratado de transportar todas as peças em camionetas, voltando a montá-la na sua Herdade das Parchanas, entre Alcácer do Sal e o Torrão.
Mas isso é outra história…
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Agradeço a Maria Antónia Lázaro a ideia e as informações iniciais que deram origem a este post e ao texto sobre o mesmo tema que assino no jornal Voz do Sado deste mês.
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Fontes
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Registos de casamentos, Lisboa, Anjos.
PT-ADLSB-PRQ-PLSB06-002-C13
Registos de casamentos, Lisboa, S. Cristóvão
PT-ADLSB-PRQ-PLSB38-002-C4
Arquivo Distrital de Setúbal
Registos de nascimentos, Alcácer do Sal, Santa Maria do Castelo
PT-ADSTB-PRQ-PASL01-001-00026
PT-ADSTB-PRQ-PASL01-001-00027
PT-ADSTB-PRQ-PASL01-001-00029
Sistematizados em www.tombo.pt
Diário do Governo, 19.09.1848; 04.04.1859; 05.10.1861; 05.08.1862; 11.07.1867; 05.10.1868; 08.10.1868; 13.02.1869; 23.12.1876; 04.06.1884; 01.07.1901; 15.01.1902; 24.03.1903; 20.12.1910
Memórias da Academia Real das Sciências de Lisboa, Nova série, tomo II, parte I, Classe de Sciencias, Mathematicas, Phisicas e Naturaes, Lisboa, Typographia da Academia, 1857.
Portal de Genealogia | Geneall.net
Carlos Alberto Damas e Augusto Ataíde, Banco Espírito Santo - A portuguese financial dynasty (1869-1973), Banco Espírito Santo – Centro de História.
Fátima Miranda Monteiro do Amaral, Sociedade Agrícola do Incomati – uma produtora de açúcar do universo Espírito Santo no último período do Estado Novo, dissertação para a obtenção do grau de mestre em História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, julho 2019.
Dissertação de Mestrado de Fátima Miranda Monteiro do Amaral.pdf (unl.pt)
ZAP, 02.12.2021
The Portugal News - Edição 1973
Jornal Económico, 29.07.2018, texto de António Vasconcelos Moreira
Comporta: viagem a uma herdade com oito séculos de história (sapo.pt)
O Observador, 04.01.2020, texto de Pedro Jorge Castro
Família Espírito Santo. Como a misteriosa “Ninita” se tornou a portuguesa mais rica – Observador
Jornal de negócios, 31.07.2020, texto de Filipe S. Fernandes.
Find a grave
https://pt.findagrave.com/memorial/262416282/cust%C3%B3dio-jos%C3%A9-moniz_galv%C3%A3o
Maria Ana Bernardo, Sociabilidade e Distinção em Évora no Século XIX – O Círculo Eborense, Edições Cosmos 2001
Sociabilidade e Distinção em Évora no Século XIX
Anuário da Universidade de Coimbra 1891_1892
UCBG-8-118-1-1891-1892_0000_Obra_Completa_t24-C...
Tuna da Universidade de Coimbra
https://tunauc.wordpress.com/arquivo/bau-de-memorias/tunos-tt/custodio-jose-moniz-galvao/
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Carlos Alberto Damas, Manuel Ribeiro do Espírito Santo Silva, fotobiografia, 1908-1973, Centro de História do Grupo Espírito Santo, dezembro 2008.
Carlos Alberto Damas, José Maria do Espírito Santo e Silva – De cambista a banqueiro (1869-1915), Análise Social, Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, volume XXXVII,pp851-878, 2020.
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223312713W5oVZ8ze9Zs04AU8.pdf
Família Espírito Santo. Como a misteriosa “Ninita” se tornou a portuguesa mais rica – Observador
A construção moderna, 1900
https://archive.org/details/construccaomoder67unse/page/n99/mode/2up?q=moniz
Imagens
Carlos Alberto Damas, Manuel Ribeiro do Espírito Santo Silva, fotobiografia, 1908-1973, Centro de História do Grupo Espírito Santo, dezembro 2008.
Carlos Alberto Damas e Augusto Ataíde, Banco Espírito Santo - A portuguese financial dynasty (1869-1973), Banco Espírito Santo – Centro de História.
Tuna da Universidade de Coimbra
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