Os estranhos destinos das filhas de Carlos Relvas
Entre a genialidade e o escândalo, o preconceito e a tradição, o autoritarismo e a desgraça. A história de duas mulheres que seguiram caminhos opostos… e a vida trágica dos seus irmãos.
Carlos Relvas* (1838-94), exímio fotógrafo, inventor brilhante, corajoso toureiro amador e eminente fidalgo da Casa Real, teve duas filhas**. A mais nova, que herdou o nome da mãe, Margarida, fez o percurso esperado de alguém da sua classe e condição, foi até uma verdadeira companheira do pai, pois com ele partilhava o gosto e o talento para a captação de imagens. Quanto à irmã, Clementina (como a avó paterna), ficou para a história pelo escândalo que rodeou o seu casamento forçado com o noivo escolhido pela família, num drama que espelha o preconceito e a ignomínia reservada às mulheres que, em finais do século XIX, ousavam trilhar o seu próprio caminho.
As irmãs nasceram em casa abastada e culta de grandes proprietários rurais e nobres da Golegã. As regras estavam bem definidas à partida.
Margarida foi a primeira mulher fotógrafa em Portugal. Não por ter sido quem pela primeira vez acionou uma máquina fotográfica, mas porque foi com ela que o “belo sexo” lusitano se estreou de forma continuada e consistente naquela arte.
Fez com o pai verdadeiras maratonas para conseguir os melhores planos, participou em numerosas exposições e concursos, onde os seus trabalhos foram amplamente premiados. Ainda assim e apesar da singularidade e valor da sua obra, nunca se livrou da suspeição de não ter sido autora das imagens que ostentavam a sua assinatura. Talvez porque, na época, questionava-se que as mulheres pudessem ser dotadas de criatividade artística ou possuir tal domínio e entendimento de técnicas, para mais de uma atividade que ainda era estranha e quase mágica para a maior parte da população.
Fica no ar a dúvida: será que Margarida gostava mesmo de fotografar ou o fazia por respeito e obediência ao pai, o altaneiro Carlos Relvas, que poucos ousavam desafiar? É que, depois de casar, cedo e de acordo com a sua condição, com o médico Alberto de Campos Navarro, deixou de se dedicar a esta atividade, optando pela muito mais recatada pintura. Foi a única a deixar descendência.
Pois, se Margarida seguiu o que dela se esperava, já Clementina teria uma existência muito diferente, que embora permaneça envolta em mistério e repleta de equívocos, causou profundo melindre social, muito pela notoriedade dos Relvas.
É difícil perceber o que é ficção e o que realmente aconteceu, incerteza para a qual contribui o facto de Alves Redol ter-se inspirado nesta família para escrever o seu romance Barranco dos Cegos.
Certo é que a jovem estava prometida ao primo José da Cunha d’Eça Azevedo, doutor de leis. Mas, como o destino adora contrariar estes arranjos familiares, é voz corrente que se apaixonou por um campino criado de seu pai e, ao que parece, seria correspondida.
Conta a lenda que o apaixonado desapareceu, deixando Clementina perfeitamente desesperada. Terá sido encontrado, 50 anos depois, emparedado numa propriedade da família Relvas cedida para a construção do Tribunal da Golegã. Foi identificado por um anel oferecido pela mulher amada, com as suas iniciais e um símbolo alusivo à profissão.
Nesta versão, da qual não se encontraram provas, a culpa de as coisas não terem corrido bem seria então da esposa e das suas “condenáveis” ligações anteriores ao casamento.
A estória, provavelmente baseada na voz do povo, foi divulgada por José Hermano Saraiva e diz ainda que Clementina enlouqueceu e acabou os seus dias a pedir esmola em Lisboa.
Parece que não terá sido bem assim.
Sabemos que Clementina acabaria por casar com o noivo apalavrado, em 22 de agosto de 1876. Ela tinha 19 anos e ele 42.
Três meses após a celebração do matrimónio, saiu de casa. Refugiou-se, em vários locais, nomeadamente retiros religiosos e na Quinta da Barroca (Torres Novas), que acabaria por herdar, onde passou 12 anos praticamente sozinha com o pessoal de casa. Ao todo, esteve 16 anos numa espécie de exílio, sem contactos do marido e muito poucos por parte do clã Relvas.
Os documentos falam da existência, no lar do casal, de uma criada de confiança de Cunha d’Eça, que ali punha e dispunha, mandando, mais que a “patroa”. Fala ainda que aquele mantinha havia muito uma relação com outra mulher, com quem até tinha descendentes, algo conhecido e aceite por todos.
Clementina intentou uma ação de separação que redundaria num processo, absurdo e rocambolesco que se arrastou pelos tribunais com avanços e recuos, mantendo-a “presa” ao marido durante 36 longos anos. A separação foi obtida em 1897 e o divórcio, que não era permitido até à implantação da República, só viria a ser decretado em 1912.
Finalmente livre, parece ter continuado com a sua vida, pois voltou a casar, em 1918, com o amigo de longa data: Manuel Hipólito Ferreira. Um enlace serôdio que se desejava ter sido mais feliz que o primeiro….mas não foi.
Todavia, vida tem destas ironias: Carlos Relvas, que contrariou o amor da filha e já não assistiu a este matrimónio, teve ele próprio uma relação contestada pela família.
Menos de um ano após o faustosíssimo funeral (na imagem) da sua amantíssima primeira mulher, Margarida Amélia, filha dos condes de Podentes e conhecida como “a Santa da Golegã”, também ele provocou a indignação geral, casando com outra mulher***. Os filhos não compareceram à boda e nunca aceitaram essa união (na imagem, o casal em passeio pelos Alpes).
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À Margem….
Carlos Relvas teve dois filhos homens. O primeiro, Francisco, foi encontrado morto aos 18 anos, no que oficialmente se atribuiu a um acidente de caça, mas que rapidamente a opinião pública justificou como suicídio por alegadamente ser obrigado a casar com quem não escolheu ou homicídio por vingança contra a família.
O outro descendente, José, também teve a sua dose de infortúnio: os seus três filhos morreram jovens, um deles por suicídio, não tendo deixado progenitura. Enfrentou muitos desentendimentos com o pai, profundamente monárquico. Cada um à sua maneira, marcaram de forma indelével a história do seu tempo. José Relvas também privilegiava a cultura, recheando com obras de arte a sua residência de Alpiarça, a Casa dos Patudos****, um projeto de Raúl Lino que é hoje um interessante museu municipal.
Ficou mais conhecido, no entanto, pelo seu protagonismo no dia 5 de outubro de 1910. Foi ele que, a partir da varanda da Câmara Municipal de Lisboa, anunciou à multidão a implantação da República em Portugal. Foi escolhido pelo seu carisma, mas também porque o líder do Partido Republicano se encontrava afónico.
Mas isso é outra história…
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*Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas de Campos
**Margarida Augusta de Azevedo Relvas e Maria Clementina Mascarenhas Relvas e Campos
*** Mariana do Carmo Pinto Correia
****Porque na zona havia abundância de patos.
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Para conhecer a multifacetada obra de Carlos Relvas, aconselha-se visita à sua extraordinária casa-estúdio, na Golegã.
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Fontes
Revisto em 27 fev. 2021 com base no trabalho:
Clementina Relvas e a condição feminina no seu tempo (1857-1934), de Manuela Poitout, publicado no nº 25 da revista Nova Augusta, Torres Novas, 2013.
Agradeço à autora a generosidade de ter partilhado comigo o seu interessantíssimo trabalho de investigação, que vem desmistificar tantos equívocos existentes em torno desta filha de Carlos Relvas.
Uma família de fotógrafos. Carlos e Margarida Relvas; de Cátia Salvado Fonseca; Lisboa: Chiado Editora – 2005. Resumo disponível em: https://repositorio.uam.es/bitstream/handle/10486/11611/57453_20.pdf?sequence=1
Mulheres, casamento e a família em Portugal na 2º metade do século XIX-princípios do século XX: alguns aspetos, de Irene Vaquinhas; in História das Mulheres de Língua Portuguesa e Espanhola, organização de António Emílio Morga – 2017
Ritualizar a morte no século XIX: O funeral de D. Margarida Relvas (1837-1887) na Golegã, de Cláudia dos Santos Araújo Feio. Disponível em https://www.academia.edu/4476889/Ritualizar_a_morte_no_seculo_XIX_-_o_funeral_de_D._Margarida_Relvas
Resenha das famílias titulares e grandes de Portugal, de Albano Anthero da Silveira Pinto, 1819-1885; Augusto Romano Sanches de Baena e Farinha,1822-1909; F.A. da Silva; Lisboa - 1883
https://archive.org/details/resenhadasfamili02silvuoft/page/272/mode/2up
Gazeta da Relação de Lisboa – Revista Judicial
7º ano, nº 20 – 30 ago. 1893
Disponível em https://books.google.pt/books?id=C5UvAQAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Ilustração Portugueza
II série; n~642 – 10 jun 1918
https://sites.google.com/site/pequenashistorietas/personalidades/miguel-relvas
http://jornalalpiarcense.blogspot.com/2014/03/o-grande-amor-de-clementina-relvas-irma.html
https://www.cm-alpiarca.pt/areas-de-atividade/cultura/casa-dos-patudos-museu-de-alpiarca
https://media.rtp.pt/visitaguiada/notas/esqueletos-no-armario/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Relvas
https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Relvas
Fotobiografia de José Relvas 1858-1929; de José Raimundo Noras; edição Imagens & Letras. Disponível em
https://issuu.com/imagens/docs/joserelvas/30
https://www.cm-golega.pt/casa-relvas
www.geneall.net,pt
https://geneall.net/pt/nome/64284/carlos-augusto-de-mascarenhas-relvas-de-campos/
https://geneall.net/pt/nome/64283/margarida-amelia-mendes-de-azevedo-e-vasconcelos/
https://geneall.net/pt/nome/180591/margarida-augusta-de-azevedo-relvas/
https://geneall.net/pt/nome/2475189/maria-clementina-mascarenhas-relvas-e-campos/
https://geneall.net/pt/nome/2475191/francisco-mascarenhas-relvas-e-campos/
https://geneall.net/pt/nome/71000/jose-relvas/
www.geni.com
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