Os excêntricos guardiões do tempo
O hábito de usar relógio foi tardio em Portugal, por culpa do nosso clima ameno e do sol que brilha durante a maior parte do ano e permitia aos portugueses calcular as horas com base na sua posição. Apesar deste cenário desanimador, por cá houve teimosos que insistiram na criação de máquinas para nos ajudar a andar no tempo certo, por vezes de forma bastante criativa e barulhenta. Veríssimo Alves Pereira e Augusto Justiniano de Araújo foram dois desses sonhadores.
Em meados do século XIX, por toda a Europa do Norte, os relógios públicos eram já comuns, as casas mais abastadas tinham abundantes exemplares destes instrumentos; entre os cavalheiros reinavam os relógios de bolso e a grande moda começavam a ser os relógios de pulso, que fizeram sensação na grande exposição de Paris de 1889. Em Portugal, pelo contrário, os relógios mecânicos eram raros, produzidos fora do País e maioritariamente para consumo de estrangeiros, que traziam consigo esse hábito ainda estranho aos cidadãos desta soalheira nação, nada preocupados com a precisão, coisa talvez vista como picuinhas.
Foi mais ou menos neste contexto, que dois artistas, com algum grau de excentricidade, se destacaram, criando engrenagens que permitissem à generalidade dos portugueses saber a hora real no nosso País e no resto do mundo.
Veríssimo Alves Pereira, instalou na Torre dos Clérigos, no Porto (1846), e depois também no Castelo de São Jorge, em Lisboa (1857), uma denominada meridiana, mecanismo que, quando o sol atingia o zénite – a posição exatamente vertical àquele ponto – fazia acionar um sinal sonoro – sinos, um morteiro ou peça de artilharia espoletados por uma mecha acesa por uma lente, mais tarde substituída por um sistema elétrico – que, pelo estrondo, dava indicação exata do meio-dia solar, correspondente à uma da tarde.
Em Lisboa, o útil aparelho foi depois montado no Observatório Astronómico, à Escola Politécnica, e no jardim de São Pedro de Alcântara, havendo relatos de as pessoas se aglomerarem à sua volta, para acertarem os seus relógios pela chamada “hora verdadeira”.
Já Augusto Justiniano de Araújo, muito medalhado em exposições, requereu à Câmara Municipal de Lisboa o exclusivo para a instalação de linhas eletro-cronométricas, para o estabelecimento de informação horaria ao domicílio, um sistema idêntico ao que já funcionava em outras cidades europeias.
É de sua autoria o relógio original do mercado da Ribeira e a adaptação do aparelho instalado no Arco Triunfal da rua Augusta. Tratava-se de um relógio criado apenas para “bater” horas, ao qual o engenhoso Augusto adaptou um mostrador voltado para a rua, permitindo ser observado por quem passa. Cumprindo o seu lema,” todos os relógios têm conserto”, aquele começou a funcionar há exatamente 140 anos, a 4 de dezembro de 1883.
Na passagem para o século XX, Augusto Justiniano de Araújo tinha já construído mais de 23 relógios de torre, dispersos pelo País, de Norte a Sul, mas também nos Açores, nas nossas antigas colónias africanas e no Brasil. Produzira numerosos relógios de parede para habitações, espaços públicos e unidades industriais.
Em Lisboa, esteve estabelecido na rua Nova do Almada, 81, na rua da Boa Vista, 164 1º (estabelecimento fundado por Veríssimo Alves Pereira) e na rua São João da Mata, onde, em conjunto, instalaram a Fábrica de Relógios de Torre.
Cada um por si criaram complexos maquinismos de horas universais, reguladores do tempo em todos os lugares do mundo, que Augusto batizou de Cosmocronómetro. Na imagem, um criado por Veríssimo, recentemente vendido em leilão por cerca de 15 mil libras.
Tinham ainda em comum o facto de as suas capacidades e interesses se estenderem às mais diversificadas áreas. Veríssimo Alves Pereira, por exemplo, construía instrumentos musicais, inventou e patenteou, contadores de precisão para o abastecimento de água e um sistema de tubagens para a iluminação pública a gás.
Augusto Justiniano de Araújo, por seu turno, criou um dispositivo para salvar vidas durante incêndios e outro para o registo automático da hora de recolha da correspondência nos marcos de correio.
Como ficou expresso nos estatutos da Sociedade de Relojoaria de Lisboa, da qual foi fundador, na sua opinião, eram várias as matérias essenciais à relojoaria. A saber: “matemática, física, química, mecânica, astronomia, progresso da eletricidade, relógios de precisão, etc”…nada que assustasse estes audaciosos inventores!
À margem
Antes da generalização dos relógios de precisão, houve variadas tentativas de pôr os portugueses na hora certa, começando pelos relógios instalados nos campanários das igrejas, embora a maioria não fosse de fiar. Na origem dos acertos estava sempre a confiança na luz solar. A partir de 1878, o Real Observatório Astronómico de Lisboa passa a funcionar como meridiano zero para todo o País, cabendo-lhe definir a hora legal, e só em 1911 é que Portugal adotou o meridiano de Greenwich como meridiano primário universal, referência já decretada internacionalmente 16 anos antes.
Pelo meio ficam muitas outras histórias, como a do célebre balão do arsenal, recentemente recriado, e a de um misterioso “professor operário”. Em 1745, este já anunciava criar e vender uma infindável lista de instrumentos e artefactos físicos e matemáticos, entre os quais se contavam relógios de sol de algibeira e relógios astronómicos com três carrilhões: cravo, órgão e campainhas. Dava pelo nome de Manoel Angelo Villa.
Mas isso é outra história…
Fontes
Fernando Correia de Oliveira, dissertação para a obtenção do grau de mestre em História e Filosofia das Ciências, A introdução do Relógio Mecânico em Portugal, Universidade de Lisboa - Faculdade de Ciências - Departamento de História e Filosofia das Ciências, 2022. Disponível aqui: Repositório da Universidade de Lisboa: A introdução do relógio mecânico em Portugal (ul.pt)
Fernando Correia de Oliveira, Gnomónica em Portugal: do Barroco à atualidade, Instituto Camões:
Ciência em Portugal - Episódios (instituto-camoes.pt)
Jornal Pedro Nunes, 23.08.1908
O Occidente, 10.08.1908.
Júlio de Castilho, Lisboa Antiga, Lisboa, Livraria Ferreira, 1885.
Arquivo Municipal de Lisboa, Representação de Veríssimo Alves Pereira contra alguns artigos do projeto de regulamento para os encanamentos particulares e consumo de água, PT/AMLSB/CMLSBAH/CHC/011/014/0034.
Arquivo Distrital do Porto
Processo para a patente de privilégio de invenção de um sistema de montagem de arcos de ferro laminado e cimbres das de pedra, PT/ADPRT/AC/GCPRT/B/233/00021
Processo de patente para obter o privilégio para um novo sistema de canalização por tubos com aplicação para o gás de iluminação pública a que os ingleses e franceses chamam gas light, PT/ADPRT/AC/GCPRT/B/233/00024
Cabral Moncada Leilões, Texto de Luís Couto Soares,
https://www.cml.pt/leiloes/2018/197-leilao/1-sessao/147/relogio-de-hora-universal
https://www.fpc.pt/pt/engrenagens-do-tempo-a-arte-da-relojoaria-mecanica/
http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=7003
Jardim Miradouro de São Pedro de Alcântara/Jardim António Nobre/Alameda Eduardo Coelho, em www.monumentos.pt
Texto de Fernando Correia de Oliveira, em
https://estacaochronographica.blogspot.com/2009/07/em-primeira-mao-apareceu-um-horas.html
http://www.museudorelogio.com/?lv1=mnsub&lv2=13
https://www.cousinha.pt/historia-rel-pt/default.htm
Imagens
O Occidente, 10.08.1908.
Arquivo Municipal de Lisboa
Firmino Marques da Costa, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FMC/000176
Artur João Goulart, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/AJG/000626
António Passaporte, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/APP/000029
Arquivo Municipal do Porto
Hélder Pacheco, F-P/HP/8/119
Guilherme Bonfim Barreiros, F-NP/2-GBB/1/190(9)