Os garanhões do Estado espalhavam “amor” pelo País
Em meados do século XIX, Portugal decidiu avançar com uma campanha nacional de reprodução, disponibilizando machos que iam de terra em terra fecundar as éguas disponíveis. O Ahil, o Tancredo ou o Gigante foram alguns dos garanhões que participaram com todo o seu empenho neste desígnio nacional.
Todos os anos, de Norte a Sul, choviam os pedidos para que os reprodutores fossem, de concelho em concelho, fecundar as éguas disponíveis. Os donos, talvez mais do que as próprias, ansiavam por aquele momento de virilidade que, se as coisas corressem de feição, resultaria num poldro passível de ser vendido ou que aumentaria a capacidade de trabalho do proprietário, algo de enorme alcance em meados do século XIX, com praticamente toda a lavoura e os transportes a dependerem da força dos animais.
Os machos, no entanto, eram sempre menos do que as solicitações e, por isso, disputados pelas diferentes terras, onde se procurava criar as melhores condições para a instalação dos postos hípicos, palco deste milagre da multiplicação equídea.
Entre março e maio, todos os esforços eram válidos para que tantas éguas quanto possível fosse acavaladas pelos garanhões colocados ao dispor pelo Governo, o exército e a Casa Real.
A iniciativa de “regeneração hípica do País” começou em 1859, com a aquisição de reprodutores em Espanha e Norte de África. Três anos depois, em Évora, fizeram-se as primeiras experiências, sob a crítica de alguma opinião pública e desconfiança inicial dos lavradores.
Coube ao fogoso Ahil, comprado pelo cônsul português em Alexandria, abrir as hostilidades.
Tão bons foram os resultados, que, progressivamente, acorreram cada vez mais éguas às campanhas de acasalamento.
Os relatórios oficiais dão conta de como ia decorrendo a árdua tarefa, por exemplo, no fecundo ano de 1866, altura em que abriram vários novos postos de cobrição.
No concelho de Mourão, em apenas 47 dias, o “vigoroso e sadio” Tancredo conseguiu exibir a sua masculinidade a 35 fêmeas, um verdadeiro recorde no distrito, até porque ainda foi às Alcáçovas cobrir mais 20. Grande Tancredo! No ano seguinte, o Gigante, apresentando-se “bem-disposto para a cópula” e conseguiu chegar a 40 éguas.
Foi também em 1866 que Montemor-o-Novo viu satisfeita a reivindicação de ter um posto hípico.
Aí compareceu o Marroquino, pertencente à Casa Real, cumprindo a sua missão por 36 vezes.
Um ano depois, o Kibir, apesar de “indócil”, “física e moralmente aleijado”, conseguiu fazer o mesmo a 33 éguas, menos uma do que o Fugitivo, um Alter que foi estrear as instalações de Arraiolos.
Progressivamente, os postos foram-se expandindo pelo País, muito impulsionados por Rodrigo Morais Soares, esse mesmo, que dá nome a uma rua de Lisboa, então diretor-geral de Agricultura.
Independentemente do ano, até ao início do século XX, os jornais enchiam-se de notícias que davam conta desta azáfama: o luso-árabe Bastardinho vai para Lagos; outro da mesma raça e um jumento castelhano vão para Barcelinhos; o cavalo Nadir segue para Ovar…
Em Aveiro, espera-se que a câmara escolha Cacia para instalar o posto de cobrição. Albergaria, Estarreja e Arouca já pediram os “preciosos sementais” ao Estado e, em Coimbra, é na Escola Nacional de Agricultura que, todos os dias úteis, entre as 9h e as 15h, com uma pontualidade digna de funcionário público, os machos executam a sua função.
A sul, Alcácer do Sal requereu dois machos. O mesmo em Palmela, que pediu a El Rei um padreador da Coudelaria de Alter. Já em Setúbal, aconselha-se que a autarquia peça pelo menos um, para “auxiliar e melhorar a produção cavalar da região” e roga-se que não aconteça como no ano anterior: devido ao atraso no pedido, “não foi possível obter cavalo por se ter já concedido a quem primeiro o solicitou”.
O governo fazia então publicar a lista com os nomes e os destinos dos animais viáveis.
Em muitos casos, eram as câmaras municipais que proporcionavam as instalações, outras vezes eram os criadores de maior importância ou outros organismos públicos regionais.
Asseguravam igualmente o pagamento a quem tratava dos animais e controlava os seus ímpetos mais violentos quando se aproximava o momento crucial.
E, nem sempre era fácil encontrar quem tivesse conhecimento e vontade para tal, muito menos para ser “cavalista” ou “lançarote”, considerado, sabe-se lá porquê, “o mais vil e ignóbil” mister.
Talvez por isso, era especialmente bem remunerado, já que os donos das éguas se desvelavam em gorjetas chorudas se o trabalho saía certeiro e bem feito.
Depois, era só esperar que o processo desse frutos, fazendo-se o registo das crias nascidas desta inseminação tão programada e desejada.
À margem
O Cavalo Lusitano será – segundo a associação portuguesa de criadores - descendente direto do cavalo ibérico, “antepassado de todos os cavalos que estiveram na base da equitação em todo o mundo”. Estará na origem da lenda grega do Centauro, “quando por aqui homens e cavalos se confundiam num só” e se dizia que as éguas estavam prenhes do vento. As características deste animal terão permanecido constantes durante cerca de 15 mil anos, mercê do relativo “isolamento desta zona da Europa”. Isto só mudou drasticamente nos séculos XIX e XX, face à miscigenação com outras raças, que os alterou física e psiquicamente.
Ora, há cerca de três décadas, um grupo de criadores resolveu resgatar o cavalo lusitano que ainda existia no interior dos equídeos atuais, encetando um processo de seleção genética com vista a acentuar os traços atribuíveis à raça original, definindo regras e um padrão a seguir pelos criadores.
Entre estes, está a Coudelaria de Alter do Chão. Fundada em 1748, é a mais antiga instituição portuguesa criadora de puro-sangue lusitano, mais especificamente da linhagem Alter Real, aprimorada para se destacar em Alta Escola e cujo exemplo mais expressivo é a Escola Portuguesa de Arte Equestre, que funciona no Palácio Nacional de Queluz.
Ontem como hoje, para chegar a esta perfeição, têm especial importância os genes. É assim que, no site da Coudelaria, podemos adquirir - por verbas que vão dos modestos 800 euros (Lúcifer, Jabuti e Jockey) aos orgulhosos 1500 (Viheste, Beirão e Coronel) - o sémen destes lindíssimos garanhões de pelagem lustrosa. Foi um destes que serviu de modelo para o célebre monumento de homenagem a D. José que podemos apreciar no Terreiro do Paço, em Lisboa.
Mas isso é outra história…
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Nota1: as imagens são meramente ilustrativas da época e situação.
Nota2: a pessoa que escreveu este post não tem quaisquer conhecimentos sobre cavalos.
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Fontes
Rodrigo de Morais Soares, O Archivo Rural, volume VI, Lisboa, Typographia Universal, 1863.
O Archivo rural - Google Livros
Rodrigo de Morais Soares, O Archivo Rural, volume IX, Lisboa, Typographia Universal, 1866.
O Archivo rural - Google Livros
Rodrigo de Morais Soares, O Archivo Rural, volume XI, reipressão sem alterações da versão original de 1868, 2022.
O Archivo Rural: Volume XI - Rodrigo de Moraes Soares - Google Livros
Acção Social – Semanário Catholico, Barcelos, Ano 1, nº22, 21.03.1917.
Diário Illustrado, Ano 8, nº2084, Lisboa, 04.02.1879.
O Ovarense – Jornal do Partido Progressista, Ovar, ano 7, nº348, 16.03.1890.
O Povo de Aveiro, ano 20, nº982, Aveiro, 08.02.1903.
Gazeta de Coimbra, ano 10, nº1259, 21.02.1922
Biblioteca Municipal de Setúbal
Gazeta Setubalense, ano 19, 26.02.1888; 11.03.1888; 18.02.1888; ano 20, 17.02.1889, 24.02.1888.
Diário do Governo, nº46, 25.02.1911
Colecção oficial de legislação portuguesa - Portugal - Google Livros
Cavalo Lusitano | APSL (cavalo-lusitano.com)
Arsénio Raposo Cordeiro, A Evolução do Cavalo Lusitano, in Associação Portuguesa de Criadores do Cavalo Puro Sangue Lusitano.
Início – Coudelaria de Alter (alterreal.pt)
(20+) Escola Portuguesa de Arte Equestre | Facebook
Lisboa de Antigamente: February 2016
A Estátua Equestre de D. José I – Intervenção de Conservação e Restauro, Câmara Municipal de Lisboa, Associação World Monuments Fund Portugal, 2012.
Estátua Equestre de D. José I by Câmara Municipal de Lisboa - Issuu
Imagens
Arquivo Municipal de Grândola
Cavalo cobrindo égua
PT/AMGDL/MM/13/41
Dois homens a cavalo
PT/AMGDL/MM/3/09
Cavalo cobrindo égua 2
PT/AMGDL/MM/45/13
Campo lavrado
PT/AMGDL/MM/102/15
Cavalos pastando
PT/AMGDL/MM/26/13
Arquivo Municipal de Setúbal
Homem com cavalo branco
PT/AFAMR/FAR/NTR/04010
Arquivo Municipal de Lisboa
Exposição de cavalos
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000371
Dois homens a cavalo
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000400
Helena Corrêa de Barros
Tratador de cavalos
PT/AMLSB/HCB/001/000146
Feira com cavalos
PT/AMLSB/HCB/002/380/003800
Estátua equestre de D. José
Eduardo Alexandre Cunha
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/002600