Os inesquecíveis salões de Maria Kruz
Nos salões de Maria Kruz, os mais aclamados intelectuais tinham o seu público selecionado, ao mesmo tempo que se teciam conspirações políticas e engendravam jogadas financeiras. Tudo à mistura com a sedução que sempre existe quando se juntam homens e mulheres debaixo do mesmo teto.
As soirées em casa de Maria Kruz eram as mais disputadas da cidade. Havia nelas um je ne sais quoi inigualável que atraía os maiores intelectuais do reino. Ali, encontravam público e mecenas, entre os raros aristocratas ilustrados, ministros, embaixadores, deputados e outros altos dignitários, que assim se cultivavam, ao mesmo tempo que conspiravam e flirtavam com a "creme feminil" de Lisboa. Esta assistência selecionada tornava as quintas-feiras na rua Formosa* um verdadeiro acontecimento cultural e social, o último salão literário de Lisboa e o único que poderia ser comparado aos que se organizavam em Paris.
Nessas noites memoráveis, havia espaço para a “galanteria, as eleições e as belas letras”. Com o pretexto da erudição, aproveitava-se para “intrigar um ministério”, com a mesma facilidade com que se combinavam casamentos ricos e nomeações burocráticas; enquanto se testavam atrações entre pessoas casadas, juntas no mesmo espaço de excitação para a mente e os corpos.
Era a “sociedade mais escolhida”, que congregava “a flor das letras e da política regeneradora” de meados do século XIX.
Pelos salões de Maria Kruz passaram, efetivamente, os nomes mais sonantes, como Alexandre Herculano; António Feliciano de Castilho; Bulhão Pato; José Estêvão, Rodrigo da Fonseca Magalhães e tantos outros.
Quando, como todas as famílias mais abastadas, se transferiam para passar o verão na frescura de Sintra, também as reuniões se deslocavam para aquele vila, chegando a ter uma cadência diária, contando com a elite ali “exilada” pelos calores estivais.
Para o sucesso destes eventos contribuía de forma decisiva o savoir-faire da dona da casa. Maria Kruz é descrita como uma “atriz primorosa”, dotada de um “rosto delicadíssimo”, uns “opulentíssimos cabelos d’ébano”, “olhos peninsulares”, conjugados com a “mobilidade nervosa de uma boca sardónica, onde se engastavam pérolas de Ceilão”. As suas indumentárias eram sempre das mais notadas, mas a sua erudição nada devia à sua beleza.
A sua principal virtude parecia advir de ser “uma mulher de espírito”, a verdadeira alma destas festas, pela forma requintada como recebia e se sabia insinuar perante os convidados.
Ramalho Ortigão dizia com humor que a “intervenção senhoril” desta senhora deu, por algum tempo, à política portuguesa, “uma leve atmosfera de delicadeza e de graça”, um “fugitivo odore de femina”, um polimento resultante da sua “amabilidade perante o prestígio político”.
Para o mesmo escritor, o “centro intelectual” na rua Formosa “exerceu na educação nacional uma influência doce e benéfica”, sendo que, durante muitos anos, era pela escada atapetada do palacete de Maria Kruz que “os literatos com algum estilo e respetiva pera iam a deputados e a ministros”.
Entre os intelectuais mais distintos estava o escritor e político Almeida Garrett (ao centro, entre outros habitués), que ali chegou a apresentar em primeira mão alguns dos seus escritos, encenados no próprio local ou noutro espaço igualmente seleto por um grupo da mais alta estirpe, assim encarnando as personagens criadas pelo autor.
Garrett não terá apenas passado pelos salões, tendo-se detido noutras partes da casa, alegadamente a sós com a própria Maria Kruz, casada com D. Pedro Pimentel de Brito do Rio, testamenteiro de Garrett. As más línguas brincavam que o escritor "morreu nos braços da Krus a olhar para a Luz" – aludindo à jovem viúva Viscondessa da Luz, a sua musa nos últimos tempos.
Resta saber se os boatos em torno da reputação de Maria Kruz não se destinavam apenas a denegrir a imagem de uma mulher com pretensões intelectuais pouco comuns às do seu tempo e mal-vistas pelos mais conservadores.
À margem
O salão de Maria Kruz foi o derradeiro de uma época que começou a declinar em meados do século XIX, caracterizada por grandes e opulentas festas, jantares, bailes, espetáculos musicais (nomeadamente ópera) e de teatro privados. Os levados a cabo pelo Conde de Farrobo, Joaquim Pedro Quintela, atingiram dimensões quase lendárias, mas também os marqueses de Penalva, os condes de Sabugosa, os duques de Palmela ou os marqueses de Fronteira recebiam nos seus palácios uma sociedade "especial", mas onde se incluíam os intelectuais do momento.
Josefa Kruz, condessa de Ficalho, (na imagem) também tentou seguir as pisadas da mãe, mas os tempos eram outros. A “velha guarda” já não se encontrava sozinha, tinha de conviver com certas classes ascendentes pela política ou o dinheiro, que prefeririam ignorar. Era uma sociedade "mais mesclada", menos homogénea e previsível no que isso tinha de bom e de mau.
Na segunda metade do século XIX, os cafés – e mais tarde as tipografias dos jornais - viriam a substituir algumas das funções dos salões, passando a ser poiso preferencial dos escritores e fazedores de opinião.
Ao contrário dos salões, que só eram frequentados por quem era do meio ou convidado de alguém nessa condição, os cafés eram públicos, embora os mais afamados tivessem clientela selecionada e até uma hierarquia de mesas, oficiosamente imposta pelos intelectuais, habitualmente avessos a essas formalidades.
“Ninguém se demorava à porta do Marrare [do Chiado] sem haver ganho celebridade e sem ter lenda”, ao passo, que no Martinho da Arcada, não era indiferente estar numa ou noutra mesa: havia a mesa dos literatos grandes, a dos regulares, a dos baixos e a mesa da missanga dos literatos”.
Mas isso é outra história...
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*O edifício é o antigo palácio dos Viscondes de Lançada, que seria depois a sede do jornal O Século.
Já aqui antes falei de outras soirées, bem mais picantes que estas, na casa de Dona Cláudia e no Palácio do Conde de Magalhães
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Fontes
Memórias I, de Raúl Brandão, Edições Vercial – 2010-2012. Parcialmente disponível em:
https://books.google.pt/books?id=5qJ9AgAAQBAJ&pg=PA108&lpg=PA108&dq=%22maria+kruz%22+formosa&source=bl&ots=U8yTDwXgIn&sig=ACfU3U3Us_VsZE-7F9FlHkLWwj6HDHQ-oQ&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwiCz_bA9IzlAhXE2eAKHRe8A8MQ6AEwB3oECAkQAQ#v=onepage&q=%22maria%20kruz%22%20formosa&f=false
Lisboa de outros tempos, e figuras e scenas antigas; de Pinto de Carvalho (Tinop); Livraria de António Maria Pereira – Editor – 1898; edição 2008. Disponível em:
https://archive.org/details/lisboadoutrostem01carv_0/page/n10
Cartas de Lisboa, de Carlos Malheiro Dias 1875-1941; Lisboa, Livraria clássica editora de A. M. Teixeira. Disponível em: https://archive.org/stream/cartasdelisboa00diasgoog/cartasdelisboa00diasgoog_djvu.txt
Sobre os intelectuais portugueses do século XIX – do vintismo à regeneração de Maria de Lourdes Lima dos Santos, in Análise Social; vol XV (57), 1979 1º; 69-115. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223989683G4pJI3dx8It15TY4.pdf
Biblioteca Nacional de Portugal
As farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz; Typ. Universal, 1871-1883. Disponível em: http://purl.pt/256
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Diário Illustrado
10º ano; nº 2:944 - 24 jul. 1881
A semana de Lisboa – suplemento do Jornal do Comércio
n~1 – 1 janeiro 1893
Brasil-Protugal
nº152 – 16 mai. 1905
http://memoria.bn.br/pdf/377880/per377880_1918_00007.pdf
Panoplia – magazine mensal ilustrado
AnoII, nº7, -1918
http://contosparaquemquiserouvir.blogspot.com/2013/04/a-extremadura-portugueza-parte-ii-1.html
http://inlisboa.tripod.com/cur_historicas.htm
https://geneall.net/pt/nome/142312/maria-josefa-de-sao-diogo-francisca-antonia-pacheco-krus/
Imagens
As imagens 1 a 4 são meramente ilustrativas da época e tipo de vivência, não correspondem aos acontecimentos e pessoas mencionadas. São pinturas de Jean Beraud obtidas em
https://www.tuttartpitturasculturapoesiamusica.com/2012/02/jean-beraud-1849-1935-french.html
e
https://pixels.com/featured/jean-beraud-paris-a-la-belle-epoque-artistic-rifki.html
Imagem 5
Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães por Columbano Bordalo Pinheiro [pormenor]. Óleo sobre tela concluido em 1926. Passos Perdidos, Assembleia da República. Fotografia de Laura Castro Caldas e Paulo Cintra obtida em
https://commons.wikimedia.org
Imagem 6
https://geneall.net/pt/nome/142312/maria-josefa-de-sao-diogo-francisca-antonia-pacheco-krus