Os nossos homens no exército russo
Há pouco mais de 200 anos, dois militares portugueses partiram, cada um por si, em busca de fama e glória, alistando-se para colaborar com os objetivos expansionistas da Rússia. Tão corajosos, quanto ambiciosos, lutaram com afinco nos exércitos de Catarina II e chegaram a conhecer a czarina, que pretendia exercer o seu domínio do mar negro ao mediterrâneo. O regresso a Portugal ser-lhes-ia fatal.
A Rússia estava em guerra com o Império Otomano desde 1768. Embora decadente, este teimava em não libertar os vastos territórios que os russos pretendiam. Estávamos na segunda etapa desta contenda e quem liderava as tropas do país dos czares era o preferido de Catarina II, Grigory Alexandrovich Potemkin, responsável pela conquista de extensas áreas antes praticamente desertas, a sul do atual território da Ucrânia.
Foram dois os militares portugueses que se destacaram naquelas longínquas paisagens, a soldo do Império Russo. Corajosos, ambiciosos, polémicos, foram mudando de campo e de fação ao longo das suas agitadas vidas.
Aproveitando os ventos da cooperação entre os dois países, com o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio entre Portugal e a Rússia, assinado em 1787, o então Major Gomes Freire de Andrade (1757-1817), rumou ao Leste da Europa.
Aos 31 anos, apresenta-se em São Petersburgo e é imediatamente enviado para integrar o esforço militar envolvido na conquista da Crimeia.
Participa depois com grande brilhantismo e à frente de uma unidade, no cerco à cidade de Oczacow (na imagem), que terminou com a vitória russa. Sempre na frente, terá sido o primeiro a entrar praça militar rendida.
Combate na campanha da Moldávia, onde volta a destacar-se em batalhas e operações decisivas.
Tudo isto pesou para ser promovido a Tenente-Coronel e receber de Catarina II a Ordem de São Jorge (4ª classe de oficial superior).
O sucesso obtido terá igualmente contribuído para a sua permanência na Rússia, cujos exércitos voltaria pouco tempo depois a servir, desta vez na guerra contra a Suécia, que se jogou essencialmente no mar.
Embora por pouco não tenha morrido afogado, foi no Báltico que conquistou nova promoção e um troféu em forma de espada com a inscrição “Pelo seu valor”. Tornou-se Coronel, depois de se bater valentemente em batalhas navais, nas quais os suecos saíram derrotados, embora, no final, tenham ganho a disputa.
Lutou até ao afundamento do navio que comandava e foi dos poucos elementos da tripulação a salvar-se das águas geladas.
Apesar deste desaire, relevou-se grande o apreço dos russos por Gomes Freire de Andrade, tendo a própria Catarina II agradecido a Portugal aquele valoroso contributo.
A eco das suas prestações foi tal que chegou ao extremo oposto da Europa, mais propriamente ao nosso País, tanto que, já a servir as tropas lusas, passou a ser conhecido como o General Russo.
Manuel Inácio Pamplona Corte-Real (1760-1832) fez um percurso idêntico. Partiu sozinho, com reduzidos meios, em 1788. Atravessou toda a Europa e juntou-se aos russos na Moldávia. A luta desenrolava-se na Crimeia.
O militar português nascido nos Açores foi integrado no Regimento de Carabineiros de Kiev, transferido como Capitão para o Regimento de Cavalaria dos Granadeiros da então Pequena Rússia (hoje Ucrânia), onde foi promovido a Major.
Combateu na foz do rio Danúbio, onde nenhum outro português lutara desde os tempos do império romano. Ali, comandando a flotilha para a tomada dos navios rivais, foi o primeiro a desembarcar.
Na cidade romena de Isaccea foi ele que se apoderou da bandeira dos vasos de guerra turcos e participou no assalto a Izmail, liderando uma coluna de infantaria. Este último ato de bravura valeu-lhe, aliás, a condecoração com a Cruz de S. Vladimiro.
Eram regiões extremamente agrestes. Os combates decorriam em campo aberto, em condições extremas, com planícies cobertas de neve ou sob um sol ardente.
Mas, Pamplona parece ter gostado, porque, já em paz, faz uma longa viagem pela Rússia e chega a conhecer Catarina II.
Estes dois portugueses, ambos maçons e liberais, seguem depois, novamente em busca de notoriedade e poder, para combater em outros exércitos, defendendo diferentes valores, países e governantes. Estiveram nas tropas portuguesas na Campanha do Roussilhão (Pirinéus); na Guerra das Laranjas - contra a Espanha -, que nos custou Olivença, e integrando a Legião Portuguesa, às ordens de França.
Quando regressam a Leste, anos mais tarde, estão do lado oposto da luta, integrado as forças de Napoleão, na desastrosa tentativa de invadir a Rússia.
Depois de tantos perigos e provações em terras tão inóspitas e distantes e de tantas batalhas ganhas e perdidas, ambos morreram bem perto de casa e de forma trágica.
À margem
Tanto Gomes Freire de Andrade, como Manuel Inácio Pamplona Corte-Real (e a mulher deste, conhecida como Rainha Pamplona) estiveram presos em São Juliáo da Barra e foram condenados à morte em Portugal. Com a corte no Brasil, o governo do País estava entregue às forças britânicas, às quais não agradavam estes dois arrojados militares que haviam lutado nos exércitos de Napoleão. Em 1811, Pamplona é condenado à pena capital pela sua participação na invasão de Portugal. Consegue fugir, desta vez. É amnistiado, chega a ministro de D. João VI, mas quando os absolutistas ascendem ao poder, é capturado e, em 1832, morre na prisão de Elvas, não resistindo aos maus-tratos recebidos dos partidários de D. Miguel.
Gomes Freire de Andrade recusou-se a participar no ataque francês ao nosso País, mas é acusado de liderar a conspiração de 1817, destinada a afastar os ingleses – e D. João VI – do poder. Até ao fim, reclamou inocência, mas acabou fazendo parte do grupo de 12 enforcados naquele tenebroso dia 18 de outubro de 1817. Ficaram conhecidos como os mártires da pátria.
Resta dizer que houve apenas mais um português a lutar nos exércitos de Catarina II: António de Sousa Falcão, primo e amigo inseparável de Gomes Freire de Andrade.
Mas isso é outra história….
Fontes
Revista Militar
nº 2605-2606 – fev/mar 2019, texto do Tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa. Disponível aqui: Revista Militar
O Conde se Subserra, de Rafael Ávila de Azevedo, in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira Volune XXXIX; União Gráfica Agrensa, Hangra do Heroísmo – 1981. Disponível em http://ihit.pt/codeigniter/assets/upload/pdf/ecacd69f0fc9dd6afb0fa20eea3fdbf3.pdf
Rui Moura, O General Pamplona Côrte-Real. Barão de Pamplona e Conde de Subserra (1762-1832) “Ser ou não ser (Liberal), eis a questão”, “O Liberalismo e os Militares em Portugal” - Atas do XXVII Colóquio de História Militar, Comissão Portuguesa de História Militar, 2019. Disponível aqui: (17) O General Pamplona Côrte-Real. Baron de Pamplona e Conde de Subserra (1762-1832) “Ser ou não ser (Liberal), eis a questão”. | Rui Moura - Academia.edu
Raúl Brandão, 1817 - A Conspiração de Gomes Freire (3º edição), Porto, Editores Renascença Portuguesa; Typographia do Annuário do Brasil, 1922. Disponível na Biblioteca Nacional de Portugal em linha: https://purl.pt/38582/2/
Império Otomano – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Gomes Freire de Andrade – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Imagens
Biblioteca Nacional Digital
http://purl.pt/13357/1/index.html#/1/html
Museu – Biblioteca Condes de Castro Guimarães
Gomes Freire de Andrade, * 1757 | Geneall.net
Praça Campo dos Mártires da Pátria, de matadouro a mercado de legumes - Lisboa Secreta
Gomes Freire de Andrade (1757-1817): O Militar (revistamilitar.pt)
Almanaque Republicano: GOMES FREIRE DE ANDRADE - OBRAS A CONSULTAR (arepublicano.blogspot.com)
Guerra Russo-Turca (1877–1878) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Guerra Russo-Sueca de 1788–1790 – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Quem foi o principal inimigo do Império Russo? - Russia Beyond BR (rbth.com)