Palácio de Justiça assaltado e maltratado
Ironicamente, numa obra levada a cabo por mão-de-obra prisional e, portanto, muito bem guardada, sucederam-se os assaltos, tendo até desaparecido todos os equipamentos de casa de banho. Foi um projeto em que município e administração central partilharam responsabilidades e…dores de cabeça. Quando se deu o 25 de abril, tudo se complicou ainda mais.
O Tribunal Judicial de Alcácer do Sal começou a ser construído em fevereiro de 1970, mas havia muito que, no concelho, era sentida a necessidade de ter um palácio de justiça com as devidas comodidades. Carlos Xavier do Amaral, o então presidente da câmara, por diversas vezes manifestou essa “grande aspiração” a quem mandava nessas coisas da justiça. Nesse sentido, deu igualmente início a movimentações para adquirir os terrenos necessários à implantação do edifício, para que não houvesse desculpas para a mesma não ir em frente.
Em 1965, estavam reunidas as condições para avançar e o incêndio que, em abril desse ano, destruiu os Paços do Concelho, tornou tudo ainda mais urgente, visto que os serviços judiciais também funcionavam no mesmo local e tiveram de ser distribuídos por outros espaços da então vila.
O projeto, que só teve aprovação à quarta tentativa, foi da autoria de Fernando Lobato Guimarães. Embora tenha acompanhado o processo até ao fim, o arquiteto por diversas vezes teve de reclamar o pagamento de algumas parcelas dos seus honorários, visto que nem o ministério da Justiça, nem a câmara eram céleres nesse cumprimento de obrigações.
A obra era paga pelo Estado, mas era a autarquia que geria os trabalhos, adiantava verbas ou aguardava que estas fossem transferidas para poder pagar aos fornecedores. Frequentemente, não havia uma coordenação impecável, até porque a administração central não aceitava de ânimo leve todas as despesas assumidas localmente.
Assim, eram frequentes as cartas de Carlos Xavier do Amaral pedindo à tutela para avançar com os pagamentos, uma vez que as faturas “caíam” em catadupa e “os minguados recursos” do município não chegavam para as “bastantes obrigações” a seu cargo.
Em 1974 deu-se a revolução e mudaram-se as vontades. A obra esteve parada algum tempo e isso fez com que se degradasse, nomeadamente com os revestimentos das paredes interiores e exteriores (azulejos e placas de mármore) a caírem, despedaçando-se no chão.
Ironicamente, esta construção feita sobretudo com mão-de-obra prisional – do Linhó e de Pinheiro da Cruz – e, portanto, muito bem guardada, nesta fase foi alvo de numerosos furtos, tendo desaparecido, por exemplo, todos os equipamentos de casa de banho.
A agravar a situação, numa época de grande instabilidade política, os preços não paravam de aumentar, tornando difícil obedecer a qualquer orçamento. Para isto contribuiu também o facto de, a dada altura, a então comissão administrativa da câmara ter optado por assumir inteiramente o processo, rejeitando o trabalho dos presos e aproveitando pessoas do concelho que estivessem desempregadas. A coordenação entre o município e o ministério da Justiça cabia ao encarregado Abílio Perna.
A ideia era louvável, mas não deu bons resultados. Os acabamentos, que previsivelmente deveriam estar concluídos em quatro meses, demoraram mais de ano e meio, com custos agravados, o que provocou grande desagrado por parte do Governo.
No fim, com imensos atrasos, o Tribunal Judicial de Alcácer do Sal abriu as suas portas em 1976. O espaço tinha a dignidade exigida à sua função, com materiais de razoável qualidade e gosto.
As obras de arte ficaram a cargo do pintor Manuel Lima - autor do traço que serviu de base à tapeçaria de Portalegre que adorna a sala de audiências -, e do escultor alcacerense António Paiva, que criou a estátua representando a Justiça, visível na fachada do edifício.
À margem
A comarca de Alcácer do Sal foi criada em dezembro de 1840, no âmbito de uma reforma judiciária lançada no mesmo ano. Englobava Grândola, Sines e Santiago do Cacém e os serviços funcionaram durante muito tempo no edifício dos Paços do Concelho, até ao incêndio que o destruiu, em 1965, o que agudizou a necessidade de um novo espaço. Em 2012, uma nova reforma extingue este tribunal, fundamentando tal decisão no baixo volume processual aqui verificado. Pelo meio há uma longa história de avanços e recuos que diversas vezes deixaram à flor da pele a rivalidade entre os concelhos de Alcácer do Sal e Grândola, lutando por ser sede da mesma estrutura judicial.
Após a implantação da República, este segundo município decidiu reivindicar o restabelecimento da sua comarca, tendo criado uma comissão específica (na imagem)* e realizado diversas iniciativas com esse objetivo, nomeadamente cedendo também o edifício onde funcionava a câmara, para albergar o tribunal. Grândola contava com um trunfo de peso: o muito conhecido, respeitado e influente político José Jacinto Nunes, que usou todos os seus conhecimentos, nomeadamente uma célebre entrevista a um jornal nacional que muito indignou os alcacerenses, porque nela o ilustre republicano, apresentando as “múltiplas razões que justificavam a restauração da sua comarca”…passou “a demonstrar as razões que justificavam a extinção da Comarca de Alcácer", o que caiu muito mal entre os muitos amigos que tinha na vila vizinha.
Mas isso é outra história…
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*Comissão Organizadora do Festival da Restauração da Comarca de Grândola
Da esquerda para a direita, sentados:
Filipe J. Serra, secretário da Câmara; António Abílio Camacho, comerciante; Joaquim Coutinho de Oliveira Mota, farmacêutico e tesoureiro municipal; Eduardo Ramalho, sub-chefe fiscal.
Da esquerda para a direita, de pé:
José Rodrigues Pablo, farmacêutico; António Alves Fernandes, tesoureiro da Fazenda Pública; José B. Júnior, proprietário; João Rodrigues Pablo Júnior, comerciante.
Fontes
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Processo de construção do Palácio de Justiça
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/10/04/01/004
Recortes de imprensa
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/0402/0005
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/0402/0007
Linhas Estratégicas para a Reforma da Organização Judiciária 15 de junho de 2012
Collecção da legislação Portugueza desde a ultima compilação das ordenações, redegida pelo Desembargador Antóni Delgado da Silva - Volume 12; Typographia de Luiz Correa da Cunha; Lisboa – 1840
Imagens
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0881
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/2057
Arquivo Municipal de Gràndola
Comissão Organizadora do Festival da Restauração da Comarca de Grândola
PT/AMGDL/MM/1/03