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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Pela imprensa (27): vacas ambulantes e leitarias espampanantes   

 

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Um discreto anúncio apresenta aos consumidores a produção de leite de vaca que se faz em Lisboa e que até se vende ao domicílio, sem acréscimo de preço, em meados do longínquo ano de 1887. Sem dúvida, um excelente incentivo ao consumo deste nutritivo alimento, que ainda não estava enraizado nos hábitos dos portugueses.

Aos olhos dos dias de hoje, depressa se destaca o facto de os animais se encontrarem instalados em quatro movimentadas e centrais artérias bem no coração da cidade: Crucifixo, S. Paulo, Trindade e São Bento.

Nem o facto de o dono atestar o “maior asseio” das vacarias, a robustez e saúde das vacas, apresentando até os nomes dos veterinários responsáveis - cuidado pouco vulgar - nos evita alguma estranheza pensar como seria esta sã convivência entre humanos e bovinos em plena Baixa-Chiado e junto à Assembleia da República.

Mais interessante nos parece tal realidade quando, fazendo alguma pesquisa, ficamos a saber que, naquela época havia cerca de 200 vacarias no distrito de Lisboa, maioritariamente urbanas, onde viviam e “trabalhavam” quatro mil animais.

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Estas vacarias serviam leite no local, onde este competia com outras bebidas mais populares.

Vendiam-no também em bilhas, mas, para além das produtoras “encartadas” e estabelecidas, havia imensas vacas a deambular.

Parando ao chamamento de um cliente, os seus donos mungiam-nas ali mesmo, servindo o leite a copo, num processo o mais natural possível.

No entanto, por peculiar que isso nos possa hoje parecer, em Portugal, reinava o ditado “Leite de cabra, manteiga de vaca, queijo de ovelha”, pelo que as cabras ambulantes eram ainda mais vulgares.

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Foi mais ou menos por esta altura que se começou a afirmar aquela que hoje todos conhecemos como a leiteira por excelência, com pelagem branca e malhas pretas.

Já residia no nosso País pelo menos desde o século XVIII, mas ainda não tinha ascendido à categoria de preferida, tanto porque, no Norte, teve de competir com outras raças pré-existentes, como porque as condições que encontrou em Portugal não eram tão favoráveis como as da sua Holanda natal.

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Efetivamente, a vaca Frisia – ou Turina, como foi batizada por cá – não pôde fazer valer a sua especialização, porque em terra pobre como a nossa, uma vaca não podia ser exclusivamente leiteira.

Tinha, digamos, de ser polivalente, contando como força de trabalho e razoável fornecedora de carne. Ora, esta nossa amiga não tinha esses dotes e, ainda, o seu leite era menos gordo, logo, pouco favorável para manteiga ou para adulterar com água, algo comum entre os produtores sem escrúpulos.

 

Essa eleição para o papel principal de leiteira não foi, portanto, um processo fácil e sem espinhos.

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A maioria dos animais vivia em pequenas unidades, em meio citadino, mas também nas hortas dos arrabaldes.

Com o tempo, o aparecimento de doenças e a consciência da falta de condições de higiene com que as vacas eram tratadas e o leite era recolhido, as autoridades acabaram por proibir as vacarias urbanas – que passaram a leitarias - e a circulação gado pelas ruas, o que aconteceu em 1920.

Escusado será dizer que outros produtos hoje tão comuns, como o iogurte, ainda tiveram um caminho mais longo a trilhar até se implantarem num país onde, dizia-se lá fora, a arraia miúda mais facilmente bebia vinho e cerveja, do que um copinho de leite, que tantas vidas ajudou a salvar.

 

 

Fontes

Biblioteca Nacional de Portugal

www.purl.pt

Diário Illustrado, 26.10.1887

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Illustração Portugueza, 09.05.1910

 

Maria Carlos Radich, «Uma vaca urbana e cosmopolita», Ler História [En línea], 52 | 2007, Puesto en línea el 20 marzo 2017, consultado el 28 mayo 2024. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/2536; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.2536

Uma vaca urbana e cosmopolita (openedition.org)

 

Imagens

Joshua Benoliel, Illustração Portugueza, 09.05.1910

Diário Illustrado, 26.10,1887

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

José Artur Leitão Bárcia, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000905

Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000112

José Chaves Cruz, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000788

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