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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Por um mar chamado Melgueiro

 

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Séculos antes dos navegadores que ficaram com os louros de tal proeza, não um, mas dois portugueses terão superado a gelada Passagem do Nordeste, que liga, por Norte, o Oceano Pacífico ao Atlântico. Com este feito que se pensava impossível, desvendaram uma nova rota, livre de piratas e navios de nações inimigas.

Há os estreitos de Bering, Cook ou Magalhães; um mar de Barents, outro de Amundsen, idem de Bellingshausen, Beaufort e tantos outras grandes extensões de água ou ligações entre estas que homenageiam quem as descobriu ou ultrapassou pela primeira vez. Então também devia haver um mar ou um estreito de Melgueiro. A denominada Passagem do Nordeste bem podia ser batizada com o nome deste português que, entre 1660 e 1662, terá levado a cabo essa travessia pela primeira vez, ligando o Japão a Portugal pelos mares gelados do Norte, algo que se pensava impossível.

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Há quem, ainda hoje, conteste este feito, pouco documentado, talvez porque a ideia fosse manter em segredo essa alternativa às habituais rotas a Sul entre o oriente e a Europa, infestadas de vasos de guerra e piratas. Melgueiro terá alcançado tal desiderato às ordens da coroa holandesa, mas não deixa, apesar disso, de ser um português.

Pouco se sabe sobre este portuense. O resumido relato da sua viagem deve-se a um espião francês que então andava por Portugal e o ouviu a um marinheiro que navegara com David Melgueiro.

O tal “infiltrado” era um oficial da marinha, de nome La Madeléne. Segundo relatou por carta ao seu ministro, chanceler de Pontchartrain, o português, zarpou da ilha Tanegashima, no Japão, a 14 de março de 1660.

A bordo da nau Pai Eterno, carregada de passageiros espanhóis e holandeses que regressavam à sua pátria, transportando as suas riquezas orientais e especiarias, evita atravessar o Oceano Índico e seguir em direção a África e ao cabo da Boa Esperança ou pelo Oceano Pacífico, enfrentando o estreito de Magalhães para chegar às águas do Atlântico.

Muito provavelmente fugindo a expetáveis perseguições, David Melgueiro e a sua tripulação dirigem-se aos mares glaciais do Norte, numa rota há muito conhecida pelos esquimós, mas raramente praticável, devido às condições climatéricas extremas.

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Seguem rumo ao estreito de Anian (hoje estreito de Bering), continuam pelo Oceano Glaciar Ártico, até 84º de latitude, passam entra ilhas Spitsbergen e a Gronelândia, rumam a sul, junto à irlanda e Inglaterra, aportando à Holanda. Aí, Melgueiro embarcou noutro navio, em direção à cidade do Porto, dois anos depois de ter iniciado o percurso.

Necessariamente tiveram a sorte de encontrar condições excecionais para aquelas paragens: estávamos no início do degelo, num ano anormalmente quente. Beneficiaram de correntes marítimas e ventos dominantes favoráveis.

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Ainda assim, enfrentaram grandes perigos, desde logo, o desconhecido, temperaturas excecionalmente baixas; as sólidas placas de gelo e os blocos flutuantes, zonas de muito difícil navegação, totalmente impossível durante a maior parte do ano.

Provaram que era possível e, por isso, é compreensível que quem custeou a viagem a tenha mantido em segredo. Não obstante, há relatos de existir a descrição do trajeto na chancelaria holandesa e na Biblioteca de Paris, para além de outras menções posteriores.

Outros tentaram, em sentido inverso, e não conseguiram, casos do holandês Willem Barents e do dinamarquês Vitus Bering (na terceira imagem), que perderam a vida nas suas tentativas. É o caso também de outro português: João Martins (ver à margem).

Melgueiro e a sua tripulação foram os primeiros a lograr fazer este percurso. Mais de 200 anos depois, foi o sueco-finlandês Erik Nordenskiöid, que ficou com os louros de ter sido o primeiro a ter sucesso.

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À margem

Ainda antes de Melgueiro, houve outro português a conseguir superar a passagem do Nordeste, só que não chegou ao seu destino e teve de regressar a Lisboa. Foi João Martins que, em 1585, transportando D. Lourenço Maldonado, tentou cumprir a vontade deste, que queria por aquela rota alcançar as Filipinas, onde era Capitão-Geral. A sua nau fez o que seria, aparentemente, a parte mais difícil da viagem, seguindo primeiro para oeste e norte, depois para Leste, chegando a passar o estreito de Anian – à entrada do Oceano Pacífico - 143 anos antes de Bering, em homenagem ao qual foi depois batizado.

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Obrigados a regressar a Lisboa devido a uma grande tempestade, puseram novamente os pés em Portugal, em 1586, não tendo chegado às Filipinas.

É ao diário de D. Lourenço Maldonado que se deve o principal relato desta viagem.

Mas, tal como aconteceu mais tarde, com David Melgueiro, o extraordinário feito ficou em branco e seria, depois, atribuído a outros.

Melgueiro, no entanto, teve algum reconhecimento em Portugal. Dá nome a uma rua, em Lisboa e, já no século XXI, foi criada uma associação que pretendia recordar e homenagear a sua façanha, enquanto alertava para o perigo que os oceanos correm, face a ação humana, nomeadamente apoiando atividades científicas de monitorização e defesa do meio ambiente.

Durante o Estado Novo, na perspetiva de promover os “heróis” nacionais e os feitos da portugalidade, um navio bacalhoeiro foi batizado em honra deste misterioso navegador. Em 1951, quando foi lançado, era o maior arrastão do mundo (na imagem, visita presidencial a este navio), responsável, dois anos depois, por aquela que foi classificada a maior captura de bacalhau de uma só vez, 26.879 quintais.

Mas isso é outra história...

Fontes

Considérations géographiques et physiques sur les nouvelles decouvertes au nord de la grande mer, Pilippe Biache, Paris, avec l’approbation & Pivilége de l’Académie Royale des Sciences, 1753.

Disponível aqui: https://books.google.pt/books?id=mxAHAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

 

Carlos José Caldeira, Apontamentos d’uma viagem de Lisboa à China e da China  Lisboa, Lisboa, Typographia de G. M., 1852-1853, CDU

910.4(512.312:469.411)"1851"

910.4(469.411:510)"1850"

Disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, em linha: www.purl.pt

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Gazeta dos Caminhos-de-Ferro, 16 fevereiro 1941, texto de Carlos Roma Machado de faria e Maia.

 

Arquivo Municipal de Paredes de Coura

Jornal de Notícias, 18.09.1982, texto de Mário Cláudio, PT/MPCR/CEMCLD/E/001-001/00003/000037

 

Museu marítimo de Ílhavo, https://homensenaviosdobacalhau.cm-ilhavo.pt/header/navios/show/55

 

Provas nacionais de português, texto de teresa Firmino originalmente publicado no jornal Público. Disponível aqui:

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.examesnacionais.com.pt/exames-nacionais/9ano/2015-1fase/9ano_Portugues.pdf

https://davidmelgueiro.org/

https://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Ph%C3%A9lypeaux,_Marquis_of_Ph%C3%A9lypeaux

https://pt.wikipedia.org/wiki/David_Melgueiro

Imagens

Roberto Araújo, Portugal: the country that has contributed most to geographic knowledge of the globe : in the course of one century she discovered and explored nearly two thirds of the inhabited globe, Lisboa, Litografia Nacional, ca 1940, CDU:

910.4(4/9)(084.3)

 

914/919(084.3)

 

912"14/16"(084.3)

 

João Vaz, Nau portuguesa so século XVI, Museu de Marinha (Lisboa). Disponível em:

 

"Nau Portuguesa do século XVI" - João Vaz — Google Arts & Culture

Comissão de Extinção das Instalações do Almirante Tenreiro, banquetes e cerimónias diversas, Visita do Presidente da República ao arrastão "David Melgueiro", Arquivo Histórico da Marinha, PT/BCM-AH/FG/009/07-014.

Vitus Bering’s expedition, https://www.britannica.com/biography/Vitus-Bering#/media/1/61919/167799

Vitus Bering | Explorer of Alaska, Siberia & Kamchatka | Britannica

Guest post: Piecing together the Arctic’s sea ice history back to 1850 - Carbon Brief

 

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