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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Promessas e sinais não salvaram os órfãos da roda

 

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Mais de metade das milhares de crianças abandonadas à guarda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa traziam consigo um bilhete ou outro sinal para que se distinguissem das demais. De pouco valeram promessas e explicações, porque a esmagadora maioria morreu antes de qualquer tentativa de resgate.

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Durante o século XIX*, cerca de 160 mil crianças, maioritariamente recém-nascidos e bebés pequenos, foram abandonadas às portas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, cumprindo uma assombrosa cadência de cinco por dia, duas mil por ano. Metade destas, trazia consigo um bilhete, um colar ou pulseira, uma medalha pendurada num fio de retrós ou uma fita de cor particular, um amuleto..., enfim, um sinal que as distinguisse entre os demais órfãos a cargo da instituição.

Muitas carregavam consigo um bilhete com a promessa, tão firme quanto raramente cumprida, de um dia serem resgatadas. A maioria morreu antes de qualquer tentativa.

 


A “Roda dos Expostos” foi criada para salvar as crianças, que antes eram deixadas na rua, à mercê de todos os perigos. Mas não cumpriu o seu desígnio. Terá, antes, contribuído para facilitar a vida de famílias numerosas, preservar intacta a honra das mães, bem como o prestígio dos pais ilegítimos. Terão os sinais que acompanhavam os enjeitados atenuado a consciência de quem assim se descartava de filhos indesejados ou inconvenientes?

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Os bilhetes que chegaram até aos nossos dias mostram habitualmente uma escrita atabalhoada, espelho da fraca escolarização de quem os escreveu, mas também os há em papel caro e com caligrafia e ortografia cuidadas. Forneciam informações sobre as crianças, o nome pretendido ou com o qual haviam sido batizadas; a data do nascimento e até, estranhamente, em alguns casos, a identidade dos progenitores que, pelas mais variadas razões, nem sempre claras nas missivas, não os podiam manter.
Avançavam com a proveniência da família – a cidade de Lisboa, mas também toda a região, de Almada a Alcochete; de Cascais a Setúbal; da Moita a Oeiras... até alguns estrangeiros. Pediam que os bebés fossem tratados com cuidado, entregues a amas carinhosas e saudáveis.

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Algumas destas missivas prestavam informação sobre a realidade do País, os conflitos armados, como as invasões francesas ou a guerra civil entre liberais e absolutistas; outros tentavam justificar o abandono. A doença ou morte da mãe; a falta de leite; uma casa cheia de bocas para alimentar e sem recursos para a sobrevivência; a pobreza extrema; a ausência do pai... a bastardia. Por vezes, as razões não eram ditas, mas adivinhavam-se nas entrelinhas. Dramas pessoais e coletivos que nunca serão completamente entendidos.


Prometiam pagar as despesas uma vez fossem recuperar os filhos e asseguravam recompensas às amas zelosas.


Certos enjeitados traziam enxoval, mais ou menos composto, outras foram deixados sem qualquer proteção.


Sobretudo, os "recados" rogavam que os bebés não fossem trocados. E por isso se multiplicavam os sinais. Um número considerável assumindo formas curiosas, engenhosas, como senha e contra-senha infalível para quando se procedesse à tentativa de recuperar as crianças.


Até porque garantiam, vezes sem conta, que a passagem pela Santa Casa seria breve, que os menores seriam resgatados à orfandade, chegando a apontar uma data certa para cumprir. Daí o medo da troca.


Os registos provaram que não importou a riqueza dos cueiros; o valor do amuleto; a elegância da escrita; a devoção à santa cuja imagem servia de base ao bilhete; a complexidade do sinal criado para alegadamente não perder o rasto ao filho assim entregue; a esperança dada pela firmeza das juras de um reencontro futuro, tantas vezes repetidas.

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Em perto de uma século, com 160 mil crianças documentadas como entregues na roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, apenas um quinto sobreviveu à orfandade e à passagem pela instituição, embora lhes estivesse destinado, muito provavelmente, um destino de miséria e vagabundagem. Com sorte, teriam engrossado a grande massa de criadagem que pululava pelas casas da capital ou, eventualmente, poderiam ter aprendido algum ofício lhes desse mais ferramentas para acudir à sobrevivência.
Só há notícia de 53 expostos terem regressado à companhia dos pais.

À margem

orfaos arquiivo municipal lisboa 3.jpgEm Portugal, a legislação sobre o abandono de crianças e o encargo pela sua criação passou por várias fases, apontando para uma responsabilização dos municípios para com os menores nestas condições nas suas áreas geográficas, o que muitas vezes era rejeitado por estas instituições, por falta de meios e/ou vocação para tal. Só no século XVIII são formalizadas as “Casas da Roda**” como entidades às quais cabia a recolha e assistência aos expostos em cada concelho, à exceção de Lisboa, onde a Santa Casa da Misericórdia era responsável. Genericamente, as crianças eram recebidas pela ama rodeira, limpas, alimentadas e os seus dados e características, bem como dos bens que as acompanhavam, eram registados ao pormenor. No dia seguinte, eram batizadas (se não houvesse informação de o haverem sido antes) e enviadas para amas externas, que as criavam até aos sete anos de idade. Isto teoricamente, porque as taxas de sobrevivência eram muitíssimo baixas. Todo o processo tinha inúmeras exceções e perversidades, desde mães que abandonavam os filhos e depois se iam oferecer como amas com o intuito de receber dinheiro para os criar; a municípios que patrocinavam a entrega de crianças em rodas de outros concelhos, de forma a evitar despesas...
Em Portugal não há conhecimento de tão inominável prática, mas em algumas regiões de Espanha e Itália, os expostos eram marcados com um ferro em brasa, recebendo assim uma marca indelével e medonha que os condicionaria para o resto da vida.
Mas isso é outra história...
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Os bilhetes que acompanham as crianças, tristes missivas do abandono, são todos diferentes, mas também apresentam muitas semelhanças entre si.
Seguem alguns exemplos.

sinal 311 de 1803 + texto.JPG

sinal 1208 de 1820.JPG

sinal 1320 de 1860.JPG

sinal 1365 de 1845+texto.JPG

sinal 1458 de 1872 +texto.JPG

 


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*O estudo consultado tem o horizonte temporal de 1790-1870 e analisou uma amostra de 7589 sinais, pertencentes a 7610 crianças.
**Na origem, as rodas eram um sistema existente nos conventos e que permitia a troca de objetos com o exterior sem que houvesse contacto com as religiosas. Este anonimato fez com que as rodas fossem usadas para abandonar crianças, assim entregues à caridade das ordens religiosas.

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As imagens de crianças são meramente ilustrativas, não correspondendo aos órfãos a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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Fontes

Ler sinais: os sinais dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1790-1870), de Maria José da Cunha Porém Reis - Tese elaborada para a obtenção do grau de Doutor em História especialidade em Sociedades e Poderes – Programa Interuniversitário de Doutoramento em História - Universidade de Lisboa; ISCTE Instituto Universitário de Lisboa; Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Évora - 2016


Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/000725

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001772

Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001538

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001808


José Artur Leitão Bárcia
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000043

Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000874

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