Quando a ópera chegou pelo telefone
Nos primórdios do telefone em Portugal, o luto do rei levou-o a estrear o novo serviço que pretendia levar a música a casa de quem a pudesse pagar. Tornou-se o nosso primeiro monarca a figurar na lista telefónica.
Em pleno século XIX, muito antes dos modernos telemóveis onde podemos fazer quase tudo e “estar” em todo o lado, já em Portugal se assistia a espetáculos através do telefone. A inovação foi estreada por D. Luís I, como forma de contornar um período de luto que o impedia de frequentar as salas de teatro. Um ano depois, já a companhia de telefones vendia aquele serviço a quem quisesse – e tivesse o dinheiro necessário – para tal luxo.
O rei já se tinha manifestado um entusiasta dos novos aparelhos - ficando surpreendido com a nitidez do som quando assistiu a uma experiência telefónica entre o Observatório Astronómico da Tapada da Ajuda e o Observatório Meteorológico da Escola Politécnica de Lisboa, em 1878. Aí, espantou-se ao reconhecer o timbre de voz de quem estava do “outro lado” da linha e distinguiu melodias tocadas em flauta e harmónio.
A Edison Gower Bell Telephone Co. of Europe, Limited, primeira concessionária de redes telefónicas em Portugal, como se vê, fez questão de, desde o início, mostrar a competência dos aparelhos para a audição musical.
Com efeito, na inauguração oficial da rede de Lisboa, a 26 de abril de 1882, a empresa promoveu a difusão de um concerto executado na sala de experiências da rua do Alecrim e ouvido através dos tubos com auscultadores em cerca de duas dezenas de primitivos telefones (como os da imagem), instalados na rua Nova do Carmo.
Entre as composições tocadas, estava o hino do rei D. Luís, que acabaria por ser o nosso primeiro monarca a ter uma ligação em casa – leia-se Palácio Nacional da Ajuda - logo em 1882, figurando - pelo menos teoricamente - entre os 22 assinantes presentes na primeira lista telefónica portuguesa.
As condições estavam criadas. Faltava só juntar o útil ao agradável.
Dois anos depois, morre a princesa Maria Ana, irmã do rei. Este, por muito condoído que estivesse com tal perda, muito lamentava que não pudesse frequentar os salões e espetáculos durante o período de luto – até para esquecer a dor - tanto mais que estreava a muito aguardada ópera Lauriana, que o maestro português Augusto Machado tinha dedicado ao próprio soberano.
Como é que este poderia falhar a apresentação?
Não falhou!
A Edison Gower Bell Telephone instalou um telefone no teatro e o rei assistiu a tudo no conforto do lar e em família,”sentado no trono de manto de arminhos ou deitado na cama de barretinho de algodão”, conforme lhe pareceu mais confortável, embora privado de bater palmas, não fossem cair os dois tubos telefónicos que lhe permitiam deleitar-se com a música.
A proeza deve ter agradado, porque valeu à companhia a Ordem Militar de Cristo e um novo serviço para vender, o que impulsionou a divulgação do telefone entre os melómanos da Capital.
No ano seguinte, a Edison Gower Bell Telephone desdobrou-se em manobras de relações públicas, convidando jornalistas e outros fazedores de opinião – hoje dir-se-ia opinion makers ou influencers - para experiências semelhantes à vivida pelo rei D. Luís, pois já então se alugavam circuitos para a temporada de ópera do Real Teatro de São Carlos e era necessário promover tal serviço.
Assim, os diletantes podiam apreciar a sua música, agarrados aos tubos do telefone, “quais monstros fantásticos”, “sem ter de fazer toilete ou emporcalhar-se nas lamas viscosas do Chiado” e, enfim, à luz da época, com razoável qualidade de som.
Diz quem experimentou que se ouvia tudo ”muito nitidamente”, com “sinfonia, coros, rondós, recitativos, bailados, árias” e até as fífias e o “obscuro ponto”.
Mas, havia algo em que o novíssimo telefone era incompetente: não permitia ver - quer fosse o decote da mulher desejada, quer os opulentos cenários e adereços – nem ser visto.
E isso era um grande obstáculo, porque isto de ir à ópera não tem só que ver com amor à música.
À margem
O que impediu D. Luís de comparecer no teatro foi o período de nojo devido pela morte prematura da sua irmã Maria Ana, feita princesa da Saxónia por casamento com o príncipe Jorge, aos 15 anos de idade. Foi um casamento pouco feliz, mas, no entanto, tiveram oito filhos. Foi depois de tratar de um destes durante uma doença que durou vários meses que Maria Ana morreu, de “esgotamento”, dizem as crónicas, antes mesmo do marido subir ao trono.
Mas, há coincidências curiosas. Na noite em que D. Luís não pôde assistir ao vivo à ópera de Augusto Machado, esteve no Real Teatro de São Carlos uma outra princesa, ou pelo menos com pretensões a tal título: Aldegundes de Bragança (na fotografia), quinta filha do ex-rei D. Miguel.
Também ela teve um matrimónio infeliz, celebrado pouco antes de comemorar os 18 anos, com Henrique de Bourbon-Parma, Conde de Bardi. Não tiveram filhos, pois todas as suas nove gestações culminaram em aborto espontâneo.
Aldegundes, no entanto, ficaria para a história por outro motivo: foi uma das principais entusiastas do Pacto de Dover, assinado em 1912 com vista a dar aos descendentes de D. Miguel privilégios no acesso ao trono de Portugal, caso se extinguisse o ramo de D. Manuel II, o que viria a acontecer mais tarde. A pretendente a princesa chegou a angariar armas, munições, comida e outros apoios para os militares de Paiva Couceiro que, a partir de Espanha, prosseguiam com as suas manobras ainda mantendo a esperança de derrotar a nossa jovem República, então com apenas dois anos.
Mas isso é outra história…
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Nota: as imagens 1, 3 e 4 são produto da imaginação de Rafael Bordalo Pinheiro que, como era seu timbre, caricaturou o rei durante a audição. Seria, mais tarde, convidado a participar numa destas sessões – durante a ópera Guilherme Tell – mas não são dele os relatos sobre a mesma que aqui figuram. Pertencem a Casimiro Dantas, também participante na experiência.
As fotografias são meramente ilustrativas do tema.
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Fontes
O Real Theatro de S. Carlos – memórias 1883-1903, por Francisco da Fonseca Benevides, da Academia Real das Ciências; tipografia e litografia de Ricardo de Souza & Salles; Lisboa – 1902. Disponível em
A introdução do telefone em Portugal, de Maria Fernanda Rollo, publicado na Revista Ingenium N.º 117 – Maio/Junho de 2010. Disponível em: Ordem dos Engenheiros (ordemengenheiros.pt)
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt
A Illustração Portugueza - Semanário – Revista Litterária e Artística
Texto de Casimiro Dantas
2º ano; nº18 – 16 nov. 1885
O Occidente – Revista ilustrada de Portugal e do Estrangeiro
1º ano, Vol I; nº 3 – 1 fev 1878
7º ano, Vol VII; nº 188 – 11 mar 1884
O António Maria
Ano 6º; mnº249 – 6 mar.1884
Biblioteca Nacional de Portugal em linha
Diário Illustrado
13º ano; nº3890 – 2 mar 1884
13º ano; nº3891 – 3 mar 1884
5º ano; nº4642 – 29 mar 1886
Lisboa, o S. Carlos e Adelina Patti; de Patrícia Moreno; Coleção Ecos de História - Chiado Editora; Lisboa – 2018. Agradeço à autora a disponibilização desta obra inspiradora.
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002801
Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/002869