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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Quando a rainha voltou

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Inusitadamente, uma morte e um nascimento muito especiais marcaram o regresso da antiga monarca, numa verdadeira romagem de saudade atentamente acompanhada pelas autoridades do Estado Novo.

 

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Pisou solo português no dia 17 de maio de 1945, 35 anos após a partida forçada. Amélia de Orleães visitou o nosso país numa jornada nostálgica rodeada de peripécias e sob o olhar vigilante de Salazar, aqui apresentado como magnânimo governante que permitiu o regresso da rainha sem trono, embora não autorizando banhos de multidão.

A estadia ficaria inusitadamente marcada por uma morte e por um nascimento diretamente relacionados com a soberana exilada que, qual avó dos netos dos outros, se fez rodear de crianças nas suas obras sociais, sobreviventes à República.

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A deslocação, de mês e meio, tinha o único “piedoso propósito” de passar alguns momentos com marido e filhos, que repousam no Panteão dos Bragança, em São Vicente de Fora, mas acabou por ser muito mais do que isso.

Mesmo sem que a agenda fosse pública, a notícia correu de boca em boca e, junto ao Hotel Aviz, onde ficou hospedada, em Lisboa, ou por onde se pensasse que a “rainha velhinha” iria passar, logo as ruas se enchiam de multidões “de quem a conheceu e que a queria conhecer”, amigos, antigos colaboradores, monárquicos “órfãos”, mas também muitos anónimos cheios de curiosidade em relação à real anciã, apesar do “limitado séquito que as instituições policiais consentiam”.

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De majestosa cabeleira branca, sempre irrepreensível na sua simplicidade, distribuiu agradecimentos, acenos e palavras amáveis, rejeitando as lágrimas que viu em muitas faces. Tinha a memória fresca, tratando pelo nome os que com ela haviam privado e lembrando-se de pormenores antigos.

Até 30 de junho, data em que abalou como chegou, de comboio, no apeadeiro de Entre Campos, Dona Amélia visitou Lisboa, Sintra, Fátima, São Martinho do Porto, Foz do Arelho, Buçaco, Alcobaça, Batalha, Mafra, Ericeira, Cascais e Queluz – Ver à margem.

A antiga rainha foi também muito requisitada durante o tempo em que esteve entre nós. A receção de despedida reuniu mais de 1500 convivas, mas alguns tiveram a sorte de ser recebidos em cerimónias restritas. Para Luís Teixeira de Sampaio, a emoção de tal privilégio seria fatal.

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A 6 de junho, o secretário–geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, eminência parda desse organismo, não aguentou e sucumbiu em pleno beija-mão, caindo aos pés da velha soberana, que tanto admirava.

A imprensa da época ocultou o facto, afirmando que se sentiu mal, morrendo já em sua casa.

Dona Amélia marcou presença no muito abrangente velório e a inesperada morte fez manchete nos jornais da época.

Esta, aliás, foi uma das notícias que contribuíram para ofuscar o impacto da visita da soberana exilada. O contexto que se vivia era pródigo em novidades, a começar por todas as movimentações relacionadas com o final da guerra – as negociações, descoberta dos campos de concentração, as perseguições aos oficiais nazis - passando pelo noticiário nacional, da estreia do filme Casablanca à inauguração da Feira Popular, a 30 de maio.

Precisamente nesse dia, à margem do programa real, na igreja de São Domingos, em Lisboa, celebra-se uma muito concorrida missa de graças por um nascimento ocorrido 15 dias antes no centro da Europa, mas que muito tinha que ver com Portugal.

Dona Amélia não comparece, alegadamente por questões de saúde, mas reza nos seus aposentos com a mesma intenção e faz-se representar no ato público pelo sempre fiel visconde de Asseca*, demonstrando a sua posição. O bebé nascido em exílio suíço é D. Duarte Pio, descendente do controverso e banido D. Miguel.

Um ano após este acontecimento e muitas intermediações depois, nomeadamente do próprio Salazar, a antiga monarca acabaria por legar em testamento bens e direitos seus à criança que, entretanto, já tinha apadrinhado e que hoje é o mais conhecido pretendente ao extinto trono português.

 

À margem

Foram muitos os locais e receções a que a última rainha de Portugal compareceu.

Em Fátima, deixou um raro autógrafo e doou um manto que ainda é uma das peças mais importantes do museu do Santuário.

No Hotel Palace do Buçaco, ocupou os mesmos aposentos que haviam acolhido a família real em 1910. Pediu frugalidade nos repastos e rumou sozinha ao cedro de S. José, tradicionalmente o mais antigo daquelas matas**.

Em Sintra, passeou sozinha pelos corredores do Palácio da Pena, que tão bem conhecia, e na Ericeira quis rever o local de onde havia partido no dia em que se implantou a República em Portugal, para recompensar os pescadores que ajudaram no apressado embarque.

Em Alcobaça, acolheu uma pomba que, largada em sua honra, entrou inusitadamente no carro e, pelo caminho, para além das habituais flores, as gentes daquelas terras férteis, vestidas com seus fatos domingueiros, queriam presenteá-la com loiças, hortaliças e frutas, enfim qualquer coisa que mostrasse o seu apreço pela ilustre visitante.

Na emotiva sessão no Dispensário de Alcântara, que havia criado meio século antes para apoiar as famílias pobres, fez questão de servir o lanche aos mais pequenos, quis saber de todos os pormenores de gestão, até da qualidade do leite. Deixou em lágrimas muitos dos que ali acorreram a agradecer o conforto proporcionado por aquele serviço social.

Visitou o Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, também obra de sua iniciativa e, mesmo sem ir ao Porto, deixou 500 contos para que se concluísse o pavilhão infantil do Sanatório D. Manuel II. Entregou mais 200 contos à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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Em todo o lado disse para não lhe dizerem adeus, mas sim “boa volta”.

Não voltaria mais por seu pé, mas apenas por sua vontade.

Morreu em 25 de outubro de 1951, depois de mais de 50 anos de exílio, 19 dos quais sem família, e foi enterrada no mesmo País que a havia expulsado.

No seu funeral, com honras de Estado, foi impossível conter as multidões.

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Mas isso é outra história…

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* Salvador Correia de Sá e Benevides Velasco da Câmara

**derrubado pelo vento em 2013, com mais de 300 anos de idade.

 

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Fontes

Fundação Mário Soares

www.casacomum.org

Diário de Lisboa

Ano 25º; nº 8073 - 18 mai 1945

Ano 25º; nº 8074 - 19 mai 1945

Ano 25º; nº 8077 - 22 mai 1945

Ano 25º; nº 8078 - 23 mai 1945

Ano 25º; nº 8079 - 24 mai 1945

Ano 25º; nº 8085 - 30 mai 1945

Ano 25º nº8089 - 03 jun 1945

Ano 25º nº8090 - 04 jun 1945

Ano 25º nº8091 - 05 jun 1945

Ano 25º nº8092 - 06 jun 1945

Ano 25º nº8095 - 09 jun 1945

Ano 25º nº8102 - 16 jun 1945

Ano 25º nº8109 - 23 jun 1945

Ano 25º nº8110 - 24 jun 1945

Ano 25º nº8111 - 25 jun 1945

Ano 25º nº8116 - 30 jun 1945

 

A volta da Rainha a Portugal (documentos vivos), de Bertha Leite; Ex-Libris - Lisboa; Centro Tipográfico Colonial  – mai-set 1945

Vidas surpreendentes, mortes insólitas da história de Portugal, de Ricardo Raimundo; Esfera dos Livros; 2011, citando Alberto Franco Nogueira em Salazar, 5ª edição, Vol. III . As grandes crises (1936-1945), Atlântida Editora; Coimbra – 2000.

A história de um cedro que o vento levou | Ambiente | PÚBLICO (publico.pt)

Ligação da Família Real com os Viscondes de Asseca - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)

ALGUNS PORMENORES SOBRE A VISITA DA RAÍNHA DONA AMÉLIA DE ORLEANS E BRAGANÇA A PORTUGAL | Estórias da Linda-a-Velha (wordpress.com)

Visita da Rainha D.Amélia a Portugal (1945) - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)

Artigo sobre a visita da Rainha D.Amélia a Portugal (1945) - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)

O nostálgico Natal da rainha D. Amélia - DN

Jornal de Leiria - Museu de Fátima trabalhou oito meses no restauro do Manto da Rainha D. Amélia

Destak.pt | República/100 anos: Embarque do rei para Inglaterra relembrado a partir da tradição oral da Ericeira

Estado Sentido (sapo.pt)

 

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)

Judah Benoliel

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/004273

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/004277

………….

Paulo Dias

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FMC/000093

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PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/FMC/000094

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Neogravura, Lda  

 

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